Depois de anos a desafiar o que se entende por cinema, Apichatpong Weerasethakul abraça agora um desafio diferente. A filmar pela primeira vez fora da Tailândia com a sua amiga de longa data, o realizador tailândes leva-nos para a Colômbia com Jessica (Tilda Swinton), uma botânica escocesa a trabalhar em Medellín, que vê a sua vida perturbada por um som estranho que aparentemente mais ninguém ouve e que a impede de dormir ou focar-se em algo que não a estranheza desse ruído. Memoria segue o percurso de Jessica enquanto tenta descobrir a origem deste som gutural que lhe assombra o sono.
O facto do novo filme do mestre tailandês ser tão difícil de descrever – pois a descrição possível é tão mutável como a própria experiência que é vê-lo – é a prova máxima do absurdo grão de brilhantismo que demonstra durante 135 minutos. Com a devida paciência e disponibilidade mental, Memoria penetra os sentidos e desafia qualquer definição ao estado de consciência em que se encontra e para o qual nos transporta, em que a realidade e o sonho são uma e a mesma coisa. É um filme que se exprime através de uma linguagem diferente, através dos sentidos mais do que pelas palavras, através do frame em vez da página, é um trabalho que flui pela calma e que se apaixona pela contemplação do mundo em vez da experiência de vivê-lo. Explora a maior profundidade da condição humana ao mesmo tempo que se perde na beleza do quotidiano e da simplicidade do mundano.
É nesta absoluta quietude que Apichatpong vai moldando as diferentes dimensões que Memoria cruza e os estados de espírito que procura ao ponto de quase parecer incoerente, mas que na descontração de quem sabe plenamente o que está a fazer, produz um filme que se sente tão fragmentado e dessincronizado como a sua própria personagem e fá-lo com uma confiança inabalável. Tilda Swinton é extraordinária numa performance que é a pedra basilar de uma peça que exige muito da sua postura física para conseguir exprimir a jornada transformativa que Jessica atravessa, e é o elemento que permite que tudo o que a rodeia no frame tenha um sentido além da sua intrínseca beleza estética. Há tantas emoções a passar pelo olhar calado de Swinton que chega a ser desconcertante quando a câmara se recusa a deixá-la e nos obriga a encarar os seus olhos durante minutos a fio.
A experiência de Memoria é difícil de explicar exatamente porque é sensorial e não verbal. É o extraordinário trabalho de som, que nos emerge plenamente na Natureza do mundo de Apichatpong, as paisagens da selva colombiana em contraste com o ritmo apressado do urbanismo de Bogotá, é a chuva e o vento contra as árvores e o ruído ensurdecedor dos alarmes dos carros ou do frenesim do trânsito. Mais difícil ainda é descrever aquilo que o filme quer dizer, se é que quer dizer alguma coisa, porque fica a ideia de que as perguntas estão apenas a ser colocadas no ecrã, e cabe a quem se vai sentar na cadeira e daquilo que leva consigo, de fazer o que quiser com o que lhe é apresentado.
É um filme que parece indecifrável, mas que nunca se sente frustrante ou arrogante, nem sequer está acima de uma boa gargalhada envolvendo estupefacientes e Jesus Cristo. É na verdade, uma exposição aberta sobre a relação cada vez mais precária entre o Homem e a Natureza, e como esta está profundamente enraizada no modo como nos ligamos uns aos outros de forma cada vez mais distante e ausente de empatia; é sobre memória coletiva e como essa de alguma forma sangra sobre as personalidades dos demais e confundem o nosso próprio sentido de individualidade e as nossas fantasias Há um momento em que Jessica procura um engenheiro de som para a ajudar a reconstruir o som, e no meio da descrição deste diz num tom frustrado “provavelmente soa diferente na minha cabeça” e percebemos que também falamos da beleza da produção artística e a sua capacidade de materializar um sentimento, um sentido ou um gesto físico em algo tão simples quanto um quadro, uma escultura ou um poema dito de madrugada com uma cerveja na mão sentado num banco de jardim em Bogotá.
É sobre tudo isto e tantas demais coisas. É uma viagem por fragmentos existenciais do ser. Soltos, desorganizados e contraditórios, mas unidos pela divina Natureza pintada por Apichatpong que é tão real como qualquer pessoa, com emoções, ilógica e, acima de tudo, com memórias próprias. Então não será garantidamente um filme para toda a gente e o terceiro ato é, no mínimo, (muito) desafiante, porém Memoria vai premiar aqueles que lhe derem hipótese, com momentos únicos que os vão marcar, tocar e fazer sentir de todas as formas possíveis. Se não for pelo conteúdo, será pela sensação de profunda paz com que nos deixa, o que, de certa forma, é exatamente o objetivo do conteúdo.
1 comentário
Lindo! O filme e a crítica!