Memoir of a Snail (2024)

de Lara Santos

“Life can only be understood backwards, but we have to live it forwards.”

É um facto que os caracóis não conseguem andar para trás. Eles movem-se ao contrair pequenos músculos nos seus “pés”, o que resulta numa onda muscular que se move de frente para trás, ou seja, sempre na mesma direção. Em vez de recuar, giram o seu corpo lentamente para mudar de rumo. Neste sentido, os caracóis são a perfeita personificação da frase supra, escrita pelo filósofo Søren Kierkegaard (1843) e utilizada em Memoir of a Snail, sobre o mundo como o conhecemos e como ponto central do filme.

Adam Elliot, após realizar obras bastante admiradas na técnica stop motion ou, como lhes chama, Clayography (uma junção das palavras clay e biography), como Mary and Max (2009) e Harvie Krumpet (2003), deu vida a Memoir of a Snail no mesmo estilo artístico, que tem recebido muita adoração por parte do público e da Academia, com uma nomeação para o Óscar de Melhor Filme de Animação, entre outras indicações.

Aparentemente categorizado como uma tragicomédia, Memoir of a Snail tem como protagonista e narradora Grace Pudel (Sarah Snook), uma mulher só e obcecada por caracóis. Após a morte da sua amiga Pinky (Jacqueline Weaver), – uma senhora idosa excecionalmente excêntrica que vivia a vida ao máximo e que lhe transmitiu um pouco da sua sabedoria -, Grace senta-se num banco de um jardim desabitado a narrar os eventos da sua depressiva e solitária vida, à única amiga que lhe resta: um dos seus caracóis, nomeado em homenagem a Sylvia Plath.

Contudo, nem sempre foi esse o caso. Houve uma altura em que Grace se sentia verdadeiramente confortável, isto é, nos primeiros estágios da sua infância que, como Percy (Dominique Pinon), o seu pai, dizia, é como estar bêbeda: todos se lembram do que ela fez e quem era, menos ela própria. No entanto, Grace recorda-se de uma altura em específico em que era muito feliz, quando tinha consigo o seu pai, em tempos um artista de rua nascido em França, que, apesar da sua eventual embriaguez e condição física, era extremamente amável e carinhoso; e Gilbert (Kodi Smit-McPhee), o seu irmão gémeo e pessoa favorita, um piromaníaco principiante que batia nos bullies de Grace quando gozavam com o seu lábio leporino e com o seu chapéu de caracol que usava constantemente e que ainda usa até aos dias de hoje.

Memoir of a Snail é uma obra incrivelmente profunda e melancólica, acompanhada de um guião maravilhoso recheado de frases e reflexões muito introspetivas e honestas que trazem um sentimento de empatia à audiência. A estrutura de memoir enquadra-se perfeitamente na história, pois Grace não narra somente os acontecimentos, mas oferece-nos um monólogo interno que só conseguiríamos obter de alguém se lêssemos o seu diário pessoal. Assim, o enredo torna-se ainda mais pessoal, vulnerável e íntimo.

Em termos imagéticos, o filme é visualmente estimulante e é percetível o rigor de todo o design de produção envolvido. A animação de stop motion tem uma qualidade de enquadramento excecionalmente encantadora e a sua fisicalidade aumenta a conexão emocional que o espectador cria pelas personagens. A sua absurda atenção a cada pequeno detalhe aliada à autenticidade da técnica, visível nas dedadas e deformidades da argila, resultam na equação perfeita do que este estilo artístico deve transmitir. O amor e o cuidado na produção de cada frame é quase palpável e as imperfeições que vemos contribuem para a sensação que é suposto ser incutida pelo mundo imperfeito e, portanto, perfeitamente humano, em que as personagens vivem.

A brutalidade e tristeza são os sentimentos que prevalecem ao ver Memoir of a Snail, contudo, é possível descontrair um pouco desta intensidade com um soundtrack, no geral, bastante reconfortante. A música, e principalmente os vários momentos cómicos e bizarros, trazem algum conforto e esperança perante este cenário melancólico. É sempre impressionante quando um filme suscita um leque de emoções opostas, conseguindo manipular tão bem a sua audiência ao ponto de num segundo estar a chorar incontrolavelmente e no próximo estar a rir com uma piada disparatada.

Neste sentido, o filme presenteia-nos com uma panóplia de personagens com todos os tipos de personalidade, pelo que cada um traz uma perspetiva e um modo de viver diferentes que enriquecem a narrativa e contribuem para a sua profundidade emocional. Gilbert revela-se como uma âncora para Grace, já que os gémeos “têm duas almas mas um coração”, como a enfermeira disse no dia dos seus partos. A sua irmandade é algo magnífico e, apesar de eventuais circunstâncias que os separaram, estão sempre de certa forma conectados profundamente e a sua relação dá-lhes a força necessária para enfrentar os problemas da vida. Pinky destaca-se claramente no meio da absurdez de cada indivíduo, servindo quase de role model para Grace e, por extensão, para todos nós enquanto audiência e, francamente, enquanto os imperfeitos seres humanos que somos. Pinky viveu muitas infelicidades na vida, mas segue de cabeça erguida e não se deixa abalar por nada, realçando a importância das pequenas coisas, como fumar um cigarro à chuva.

Há quem aponte como crítica menos positiva o facto do filme ser demasiado depressivo, no entanto, a verdade é que há pessoas que têm vidas assim e não existe nada de exagerado nas situações pelas quais Grace passa e mostrar essa realidade nunca pode ser em demasia. Memoir of a Snail é acima de tudo um filme sobre viver. Relembra-nos do quão importante é continuar a viver, apesar dos inevitáveis desafios que surgem, e que é justamente nos momentos de maior dor que encontramos oportunidades para criar espaços de felicidade e permitir a renovação e o crescimento. Deste modo, a obra propõe que a beleza da vida não está em negar o sofrimento, mas sim na capacidade de perceber, através dele, a profundidade e a temporalidade de tudo o que nos rodeia.

Foi Victor Hugo, romancista francês, que uma vez disse, na sua obra Les Travailleurs de la Mer (1866), que a melancolia é a felicidade de ser triste, uma frase que se aplica profundamente a Memoir of a Snail. O filme deixa um rasto de temas delicados sobre morte e solidão, mas, no final do túnel, oferece esperança e revela-se como uma luta de autoconhecimento, onde dois irmãos gémeos descobrem a força que têm para se tornar nas melhores versões de si.

5/5
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