O que seria do cinema moderno sem Francis Ford Coppola? Quantos filmes, cineastas e cinéfilos não são diretamente influenciados por The Godfather (1972)? Quantas vezes, quando se quer elevar um filme de guerra, não se tecem comparações a Apocalipse Now (1979)? Quanta obsessão não inspirou The Conversation (1974)? A paisagem do que hoje entendemos por cinema seria muito diferente sem o seu contributo, portanto é algo belíssimo e profundamente trágico que o seu projeto mais ambicioso, para o qual durante 40 anos procurou financiamento, finalmente tenha visto a luz do dia, ainda que à custa da sua própria bancarrota.
Isto é contexto que vale a pena ter em conta ao ver Megalopolis e mais relevante é quando se quer falar dele. Cesar Catilina (Adam Driver) é um arquiteto visionário que sonha uma utopia para a cidade de New Rome: que esta seja construída sobre o material Megalon, cuja descoberta lhe valeu o prémio Nobel, e que se transforme num lugar virado para o futuro e para o progresso. Contrariamente, o mayor da cidade, Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito) tem um caminho diferente para New Rome, um marcado pela transformação do seu centro num distrito populado por hotéis, casinos e decadência com uma capacidade de geração de receitas de tal forma extraordinárias que prometem libertar os cidadãos da miséria para onde New Rome os atirou.
Este é o ponto de partida desta “fábula”, como lhe chama Coppola num dos title cards de abertura, no entanto é apenas uma ínfima telha do complicado e frequentemente incompreensível mosaico que é Megalopolis. Não é preciso estar muito tempo diante do ecrã para compreender o porquê deste projeto nunca ter descolado; o nível de ambição, de desafio de convenções, de risco e de loucura é perfeitamente peculiar. Megalopolis é já de si um milagre por existir, por ter sido trazido ao mundo pelas mãos de um cientista louco como Coppola, que construiu um filme que nem ele, neste preciso momento, deve captar na totalidade, fugindo-lhe das mãos algures a meio do processo. A verdade é que haverá quem diga que esta será uma daquelas obras que será revisitada e reavaliada daqui a uns anos e que, aí sim, o génio de Coppola e o seu imaginário serão apreciados em toda a sua glória. Estes crentes podem não estar errados na sua fé, no entanto, esperemos que esta seja inabalável porque a verdade é que Megalopolisé uma ruína.
É um guião que aparenta ter os seus 40 anos de ideias empilhadas em cima de ideias, que são empilhadas em cima de outras ideias, escritas e reescritas uma e outra vez, embaralhadas incessantemente ao longo de quatro décadas até que se tornaram indistinguíveis e indecifráveis. Há laivos de grandeza espalhados por Megalopolis, porém as ambições e irresponsabilidades de Cesar Catilina são também as do seu criador, que tentou fazer demais sem pensar nas consequências, que sonhou tanto em construir algo que se esqueceu daqueles para quem o estava a construir. A utopia de Catilina é, acidentalmente ou não, o filme de Coppola. Um filme que imagina um mundo novo, um de florescimento cultural, social e espiritual, uma estrada para o futuro construída sob os escombros de um mundo pós-capitalista em que supostamente o sentido de comunidade é o material de construção, perde-se pelos caminhos megalómanos e falta de contenção do homem atrás da câmara, sentindo-se que Megalopolisé fruto de alguém que se sente intelectualmente acima dos seus pares e que na ânsia de o mostrar apenas pretensioso pareceu.
Se alguém ganhou o direito de ser pretensioso é Francis Ford Coppola, que não haja dúvida quanto a isso. Porém Megalopolis, por muito que se o possa prezar pela ambição e coragem, é bacoco, por vezes amador, com um ritmo alucinante em que cada intriga, que em outro qualquer filme seria ponto central, aqui se resolve na cena seguinte sem particular peso dramático e com atuações abismais. Não é habitual um elenco com tantos nomes sonantes – Adam Driver, Giancarlo Esposito, Nathalie Emmanuel, Aubrey Plaza, Jon Voight, Shia LaBeouf, Dustin Hoffman, Justin Schwartz – apresentar-se a um nível tão lamentável, ficando a dúvida se o problema está apenas no terrível diálogo que estão obrigados a proferir ou se era isto mesmo que quem os dirigia queria deles. Diálogo esse que é servido em cenários que ao mesmo tempo aparentam ser épicos e desleixados, em que se misturam adereços e salas curiosas com efeitos visuais que em alguns momentos parecem retirados de cut-scenes dos clássicos da Playstation 2, criando-se uma atmosfera de pretensão, em que vemos algo a tentar ser gigante, mas a ficar constantemente aquém. É um filme que desafia qualquer norma visual, acreditando que a mera quebra de regras o eleva mesmo quando, em momento algum, apresenta algo que se aproxime de interessante.
É uma epopeia épica e sobrelotada, com traições políticas e conjugais, reflexões sobre classe, cidadania, o peso do progresso e a dor do artista, mas é também penoso, frio e desligado. A sua existência é um milagre, só não um dos bons. Todos devemos celebrar a sua existência pois é essa a única razão de celebração, pois os seus méritos terminam nas intenções. Megalopolis é vítima da independência de Coppola, que precisava, em algum momento, de um toque no ombro e duas palavras: “já chega”. Com a ausência deste toque, fica nas mãos do público dizer “Francis, já chega”. Mas é tarde demais.