May December (2023)

de Pedro Ginja

Nas entrelinhas de uma verdade enterrada.

Há um prazer sórdido, em cada um de nós, de ver um escândalo a desenrolar-se em directo. Sim, é verdade, mesmo tu que agora estás a abanar a cabeça em desacordo. Todos temos essa necessidade de descobrir o porquê por detrás de cada acto hediondo. Poderá ser um homicídio, um caso de pedofilia, um culto satânico ou incesto. Haverá com certeza uma razão que explique o porquê desta pessoa, muitas vezes respeitada e amada pela sua comunidade, destruir a vida de todos os que a rodeiam para satisfazer um desejo primário. Seja no esmiuçar de pormenores, o devassar da vida privada dos entes queridos e a perseguição incessante dos intervenientes no escândalo, nada é sagrado ou livre do escrutínio incessante. E no final, quando o interesse está saciado, desaparecem em busca da próxima “carcaça” para, da qual, se alimentarem vorazmente, num ciclo ad eternum.

Muito menos comum é o regresso, muitos anos depois, ao “local do crime” para ver as consequências de tamanha implosão. É isso que este May December de Todd Haynes procura descobrir ao acompanhar Elizabeth (Natalie Portman), uma actriz que decide estudar um futuro papel directamente na fonte do escândalo. Este remonta há 20 anos atrás quando Gracie (Julianne Moore) teve um caso amoroso com Joe (Charles Melton), quando este andava no 7º ano escolar, acabando por ser condenada por pedofilia. Este reavivar de memórias e recordações vai pôr em causa a “harmonia familiar” construída por Gracie e Joe, fruto da demanda de Elizabeth em mostrar a verdade sem olhar a meios.

De um argumento de Samy Burch, Todd Haynes consegue, mais uma vez, imprimir a sua linguagem cinematográfica carregada de subtileza e duplos sentidos a algo que em outras mãos correria o risco de cair no julgamento fácil de Gracie e num inevitável directo na CM TV. Chamar a May December um drama ou uma comédia será redutor e nem mesmo o termo sátira será o correcto. O argumento salta entre géneros com uma desenvoltura inspirada criando uma amálgama de sentimentos contraditórios no espectador. O riso surge, por vezes, durante cenas emocionais e nos momentos mais inoportunos, levando-nos a questionar a pertinência das opções narrativas mas nunca a genialidade da execução. Um nível superior ao constrangimento, sentido quase ininterruptamente, consegue penetrar-nos na pele e embrenhar-se por todas as fibras do nosso corpo ficando bem para além dos seus 117 minutos. E a pergunta “Porquê” repete-se como um eco difícil de suportar. Falando de execução temos a deliciosa música de Marcelo Zarvos que brinca com as sonoridades dos documentários escandalosos dos anos 90, sempre a colocar um sorriso no nosso rosto. Em termos visuais, Todd Haynes é igual a si próprio criando soluções perfeitas para o ambiente a criar, desta vez colaborando com Christopher Blauvelt na direcção de fotografia. Desde o uso de espelhos para reforçar a constante performance de todos os protagonistas, o quebrar da Quarta Parede para corroborar o voyeur em cada um de nós ou a sua fascinante obsessão com o emoldurar da acção. Tudo isto conspira, em conjunto com a brilhante opção de filmar os exteriores em Savannah, para criar o cenário idílico desta “fábula” dos nossos tempos.

Tudo isto está assente no magistral trio de protagonistas encabeçado por Natalie Portman, no papel de Elizabeth, que chega como uma brisa suave e acolhedora, e se imiscui na realidade de Gracie e Joe à procura da verdade. Desde o início que os sinais estão presentes, de uma tempestade iminente, ao reavivar as verdades escondidas do casal. Ao explorar essas zonas morais duvidosas, como maneira de “encarnar” Gracie, a Elizabeth de Portman actua como um espectro que “suga” e absorve as incongruências de todos com quem se cruza. Há um charme irresistível mas também um oportunismo implacável no descobrir das fraquezas e no explorar das necessidades recalcadas. Tudo culmina num dos mais brilhantes monólogos recentes gravados no cinema. O talento impresso em Elizabeth, por Natalie Portman, é replicado na Gracie de Julianne Moore que tenta “vender” uma história Disney incompreendida no passado mas vivida em pleno no presente. Há uma “ameaça” presente desde a sua primeira interação e um suposto “dever” de Elizabeth trazer a verdade ao mundo, do que ela apelida a “maneira certa” – uma verdadeira love story. E nunca há dúvidas de que é nisso em que acredita mesmo quando se começam a descobrir as “cicatrizes” desta relação. Os momentos de antagonismo e fricção entre ambas começam a ser mais frequentes à medida que Elizabeth imita, cada vez mais, Gracie. Desde os gestos hiperfemininos a lembrar uma princesa, falando com um ceceio e vivendo, durante esses dias, como uma actriz na sua própria realidade. As duas personagens parecem fundir-se numa só fruto de um brilhante trabalho de colaboração em que é visível a sintonia entre ambas. A verdadeira revelação deste trio é Charles Melton, que interpreta Joe, o “príncipe encantado” de Gracie que, segundo a fábula de Gracie, a salvou de uma existência banal. Tal facto não poderia estar mais distante do que é apresentado na narrativa. O seu olhar vazio, despido de qualquer entusiasmo, os gestos apagados e mecânicos, a obediência cega que lhe retira qualquer individualidade são tão intensos que nos obrigam, quase sempre, a desviar o olhar com receio de, também nós, ficarmos dentro da sua prisão mental. Ver esta multiplicidade de emoções e repressão auto-inflingida vinda de alguém cuja fama provém de um papel secundário durante 6 temporadas na série Riverdale (2017-2023) (mas que ele próprio apelidou de ser a sua “Julliard”) é impressionante e uma confirmação de que não devemos julgar um livro pela sua capa.

Como num tsunami existem sinais de aviso quando May December começa a rodar no grande ecrã. O “recuar das águas” imposto pela Elizabeth de Natalie Portman, enquanto investiga e descobre quem é Gracie; é um som ensurdecedor que cresce em conjunto com o nosso desconforto, os sentimentos contraditórios com a história e a nossa mórbida curiosidade com o porquê que nos leva à praia onde somos varridos pelo “tsunami” chamado Charles Melton. E só mesmo Todd Haynes teria a audácia, após esta avalanche de emoções, de nos presentear com uma gargalhada libertadora e um sonoro “Fuck You” ao circo mediático dos tabloides.

4.5/5
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