A imaginação é a nossa maior arma. Estou consciente que é uma arma naturalmente impotente numa inesperada disputa de pistolas, mas acredito que com tempo suficiente e uma página mental vazia apta para ser preenchida, uma vitória consegue estar garantida, sem ser necessário premir um gatilho. As balas desvanecem e o triunfo dos aplausos apoderam-se dos caçadores somente apegados à brutalidade. Através da imaginação, o ser humano viajou à lua, desenvolveu tecnologias únicas, evoluiu o nosso espaço, os nossos corpos e o nosso planeta. O mundo presente apenas existe devido à imaginação humana. O cinema é uma reflexão do seu poder. No grande ecrã, descobrimos diversas manifestações fantásticas da imaginação, dentro do meio da expressão artística, com a capacidade de transportar-nos pelo tempo, espaço, e por pessoas. Para um futuro simultaneamente familiar e desconhecido. Limitações criativas, impostas por produtoras e pelo capitalismo que aprisiona a cultura e as artes, impedem a imaginação de florescer além do orçamento estabelecido. Nesta atmosfera, cineastas como Jérémie Périn surgem para comprovar que no meio da animação, tudo é verdadeiramente possível. O único limite é a imaginação.
A sua primeira longa-metragem é uma obra de animação sci-fi neo-noir situada no Século XXIII, em Marte, acerca de uma detective privada, Aline Ruby (Léa Drucker), uma mulher solitária a recuperar do seu alcoolismo, e o seu parceiro, Carlos Rivera (Daniel Njo Lobé), um android a tentar ultrapassar as suas memórias humanas passadas de um homem violento, numa investigação para encontrar e deter uma infame hacker, que procura libertar a inteligência artificial dos humanos. Empenhados nesta investigação, a dupla desvenda as entranhas pútridas corruptas deste planeta, com segredos equipados para desfazer a própria humanidade. Nesta exploração da nossa ligação com inteligência artificial, sentimos o magnífico engenho humano escondido atrás do colossal ecrã; Jérémie Périn comprova este facto com uma produção que carrega um surpreendente orçamento de 8 milhões de euros. É necessário mencionar que se Mars Express fosse um filme live action, o seu budget ultrapassaria inevitavelmente os 100 milhões de dólares. Provavelmente também seria um maior sucesso financeiro. O meio da animação permanece desprovido do respeito e magnitude que merece, do público. Lamentavelmente, pois Mars Express revela uma narrativa fascinante e imprevisível, que absorve a audiência completamente no seu mundo e nos seus conceitos dramáticos, digna desse louvor.
O seu argumento singra por um futuro cinicamente envolto na autodestruição humana, abandonando o nosso devastado planeta azul para colonizar um embrião vermelho, fincando o cordão umbilical da evolução científica no perpétuo pestilento capitalismo, com estudantes a alugar as suas memórias e mentes a companhias, para poderem pagar os seus cursos; e animais domesticados ressuscitados através da inteligência artificial para se comportarem exatamente como as nossas criaturas amadas. Tudo é real mas nada é verdadeiro. É uma visão irónica, onde os seus seres entregam os corpos aos piores instintos tecnológicos, dedicados a perder a sua presente humanidade para conservar uma réstia de nostalgia familiar, criando soluções invés de tentar compreender os motivos responsáveis pela sua extinção. Se cada passo em frente implica dois passos atrás, a resposta está em substituir a escada por um elevador até aprendermos a flutuar.
Jérémie Périn arrebata no seu impressionante uso de tecnologia para contar esta história, preservando a lógica da sua construção e salientando o seu propósito/posição nesta sociedade, nunca dependendo somente de diálogos expositivos, permitindo que o seu mundo simplesmente exista através das suas personagens e que a sua ação comunique o essencial para a audiência. Funciona perfeitamente pois conseguimos compreender a sua mecânica, mesmo desprovidos de uma explicação detalhada. Esta decisão transforma o seu globo encarnado num ambiente vívido, materializado, com textura e uma atmosfera pungente. Torna-se verdadeiramente credível e vivo, com um batimento cardíaco, ainda que aliviado por um pacemaker.
Neste espaço onde a autonomia parece inexistente face à tecnologia, pessoas falecidas são ressuscitadas como androids, completamente cativas ao controlo humano, uma ideia espelhada em Rivera, um agente falecido cuja nova oportunidade de vida implica uma absoluta restrição física e mental ao seu emprego e ao seu governo, despido da sua antiga liberdade, com os seus anseios ignorados. Contudo, é uma reflexão que perfura Mars Express: será que merecemos essa liberdade? O ser humano é imperfeito; até o mais bondoso exibe uma moralidade complexa ou uma fragilidade irrevogável perante as suas emoções e pensamento. Esta é uma história de emancipação mental e corporal situada numa espécie de apartheid robótico que arrisca um monstruoso desvio para uma área ofensiva; o seu argumento inteligente impede essa curva ao colocar o seu eixo na ligação entre IA e a insensível funcionalidade humana de domínio, desinteressada nas vidas e nos trabalhos apropriados por estes programas, desligados deste sistema.
Mars Express rejeita uma visão completamente destituída de esperança. No seu futuro, prosseguimos a cometer os erros da atualidade, alimentando uma evolução tecnológica que simplesmente atrasa a nossa humanidade, todavia, preservamos o nosso idêntico espírito pugnaz, repudiando os sonhos despedaçados com suor, sangue e óleo. Talvez seja verdade, talvez não sejamos inteiramente dignos da nossa liberdade, mas quando experienciamos uma narrativa audiovisual como Mars Express, com uma coreografia de acção distinta e excitante, uma animação espetacularmente elegante, combinando naturalmente CGI com 2D, uma banda sonora electrónica pulsátil e uma história cativante que investe o público igualmente no seu mistério como nas suas personagens, somos recordados de tudo o que a liberdade permite à humanidade. Apenas precisamos de acreditar na nossa imaginação.
1 comentário
[…] e em antestreia nacional na última edição do Festival Monstra, MARS EXPRESS é o terceiro filme do ciclo de sessões NIGHT EDITION BY TVCINE, em parceria com […]