Maria (2024)

de Rafael Félix

A peça final da trilogia de biopics de Pablo Larraín é Maria Kalogeropoulos, a famosíssima cantora de Ópera que havia de adotar o nome de Maria Callas, La Divina, a maior soprano do século XX. Abandonou os palcos por motivos de saúde aos 49 anos de idade e seria encontrada sem vida no chão do seu apartamento em Paris, onde passou os seus últimos anos enclausurada, nostálgica pela adulação, solitária e semi-delirante devido aos incessantes cocktails farmacológicos a que recorria para sobreviver ao quotidiano longe da plateia.

Os primeiros frames de Maria informam-nos o dia: 16 de Setembro de 1977. Um lençol a cobrir um corpo e os resquícios de um aparato médico que parece já ter terminado há algumas horas. A atmosfera é diferente daquela de Spencer (2021) e Jackie (2018). Esta trilogia de Larraín, até agora, brincava recorrentemente com a ideia de destino e como fugir das amarradas deste – Diane conquista a liberdade em Spencer e Jackie rejeita o papel de viúva frágil em Jackie -, porém Callas (Angelina Jolie) encontramos já na sua estação final e a única coisa que nos é oferecida são os últimos passos nessa direção. Enquanto os anteriores membros tinham um espírito de rebelião, Maria também o tem, mas com um sentimento inegável de derrota. Abandonamos a fuga ao fado e encontramos a inevitabilidade deste ao conhecer de imediato o fim da história que é a de Maria Callas.

Ainda assim, falta a profundidade emocional que já encontrámos nestes filmes de Larraín. Jolie carrega toda a carga emotiva do filme, numa performance belissimamente vulnerável e segura de si, e que tem por vezes de compensar as lacunas e tropeções do guião de Steven Knight, pois por cada momento de brilhantismo, há um outro no extremo oposto do espectro. Maria torna-se demasiado ciente de si mesmo, em que praticamente vira Maria a verbalizar as suas ânsias para quem está do lado de lá do ecrã, o que a espaços resulta, todavia remove um pouco da magia que Jolie põe na personagem e que a realização põe em tudo o que a rodeia. Se se pode dizer que nem sempre a interpretação de Jolie funciona nos momentos musicais, deixando-se cair no karaoke que vai populando filmes centrados em figuras da música, também se deve dizer que este é praticamente o único passo em falso imposto por Larraín. Este continua a capturar nostalgia como nenhum outro, fundido diferentes paletes de cores, câmaras e películas para construir todo um sonho que se vai impondo na realidade à medida que Callas vai obscurecendo; os mundos amarelos e esverdeados que fazem lembrar Kieslowski vão transformando a Paris em que Maria Callas passeia seguida por uma equipa de filmar que só ela vê e a quem conta a sua história. Nos seus termos, claro, mas nunca raramente como Maria, quase sempre como Callas.

Maria é um filme sobre alguém que desapareceu debaixo da persona que criou e que sem esta, não encontra uma alternativa para viver. O passado não é um lugar onde queira voltar e o futuro não parece ostentar nada digno daquela que levou a sua voz a todos os cantos do globo. Callas já não existe e Maria também não. Resta uma mulher no limbo, com saudade da adulação que outrora fora um vício insaciável e agora é pouco mais que uma recordação que teima a espicaçar-lhe o ego. É acompanhada por duas personagens que orbitam totalmente à sua volta, o mordomo Ferruccio (Pierfrancesco Favino) e a criada Bruna (Alba Rohrwacher), ambos a tentar equilibrar a necessidade de manter a ilusão que Maria Callas ainda é a diva que sempre foi e o imperativo de a lembrar que já não o é, como forma de lhe salvar a vida. Ambos garantem que a solidão que Maria sente é interior, pois cá fora, há quem não tenha desistido dela. Uma ínfima esperança num filme que a tem em doses muito modestas.

Larraín usa assim Maria como um fechar de capítulo, ainda que o menos sólido dos três. As jornadas de Spencer e Jackie encontram-se aqui, com referências diretas – o ex-companheiro de Maria havia de casar com Jackie Kennedy –, e outras espirituais, numa das sequências vemos Jolie a interpretar a personagem que assombrava Diane em Sandringham. Três mulheres do século XX; mulheres que se virão escrutinadas e dilaceradas na opinião pública, julgadas pelo que são, pelo que deviam ser, pelo que deverão ser e pelo que já foram. O público insatisfeito e esfomeado, de expectativas frustradas por estas se recusarem a seguir os caminhos que lhes traçavam. O mundo foi cruel com elas e Pablo Larraín, Angelina Jolie, Kristen Stewart e Natalie Portman devolveram-lhes a humanidade através da única forma que podiam: a do cinema.

3.5/5
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