O nepotismo é parte integrante da sociedade e por conseguinte também da indústria cinematográfica. Existem inúmeros exemplos dentro da indústria de Hollywood, na qual tem cada vez um maior alcance e influência. Por vezes, trata-se apenas de uma decisão meramente económica pois o casting de alguém famoso, mesmo que meramente por parentesco, cria logo uma maior atenção sobre o projecto. Não é, no entanto, um fenómeno exclusivo de Hollywood, e estende-se ao cinema europeu. Um dos seus maiores exemplos é escolhido por Christophe Honoré, na filha de dois dos mais reconhecidos intérpretes do velho continente, Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve, a actriz Chiara Mastroianni.
O ponto de vista do nepotismo é visto, no argumento de Honoré, de quem “beneficia” dele, a própria Chiara Mastroianni, a interpretar uma versão de si própria. Após uma sucessão de más experiências de trabalho, e da constante comparação com os seus progenitores, decide levar o sentimento de nepotismo ao extremo encarnando o próprio pai Marcello Mastroianni. Não apenas em espírito mas também na maneira como se vestia, falava e respirava cinema. Caminhando entre Paris e Roma, na pele do pai, atraí olhares enquanto navega nas recordações e lembranças de família e entes queridos. Entre a loucura da realidade e a descoberta da ficção, a linha é ténue. Onde jaz a verdade de Chiara? – parecem todos perguntar à sua volta.
Este é um objecto cinematográfico surpreendente e ansioso por abordar a polémica do nepotismo desde a primeira cena. Caso em questão, a fonte de Trevi na cidade de Roma, exemplo maior da cinematografia de Marcello. Chiara está numa sessão fotográfica, retirada a papel químico da icónica cena de La Dolce Vita (1960), em que Anita Ekberg é a personificação do desejo. Mas em vez do encanto irresistível de Anita contamos com as dúvidas existenciais de Chiara, que a cada segundo em cena, se tornam exponencialmente constrangedoras. Em vez de sedução temos o riso do desconforto e o desespero da sua personagem.
É um crescendo de situações, em que é comparada aos seus progenitores, que resulta a suposta loucura a que parece sucumbir. O limiar entre realidade e ficção é constantemente ultrapassado, tornando-se uma só, e não duas, entidades distintas. A própria mãe, Catherine Deneuve, surge também a fazer dela própria, assim como antigos amigos, maridos, amantes e velhos conhecidos da família Mastroianni, também eles variantes de si próprios. Apesar do argumento estar apenas creditado a Christophe Honoré, é óbvio que existe influência do que a actriz quer revelar de si. Apesar de ser simpatético com a sua situação, e do peso enorme do legado que carrega, não a poupa em diversas outras situações, como na violência verbal a que está sujeita, o menosprezo do seu talento, ou ridicularizando constantemente a sua nova persona Mastroianni, colada ao seu pai. O bonito da história é de como o equilibra com uma avalanche de momentos cómicos, nem sempre bem-sucedidos mas com uma honestidade tocante, e de imensos momentos de ternura, na partilha de memórias passadas e do amor que a une a seu pai. Além do espectador, que muitas vezes vê de soslaio Marcello Mastroianni encarnado em Chiara, também Catherine Deneuve, Fabrice Luchini, Nicole Garcia, Benjamin Biolay e Melvil Poupaud, transformam a sua incredulidade perante a situação na visão de um fantasma real do seu passado, presente e futuro. Como uma assombração da qual nunca se libertaram.
A única personagem totalmente ficcionada é Colin Thirwell, interpretado por Hugh Skinner, e é também a menos conseguida. Não pela falta de talento do actor ou relevância na história mas por ser a única distante do universo Mastroianni e à qual nunca nos conseguimos ligar. O uso do inglês, nos diálogos com o actor, também parece deslocado pelas mesmas razões e não reflecte a identidade marcante presente no francês e no italiano, ambas suas línguas maternas. Quem conhece a história do actor sabe que o mesmo sempre foi fiel ao cinema europeu, quase sempre italiano ou francês, tornando o uso do inglês ainda mais estranho de escutar.
Nota final para a banda sonora, misturando música popular e erudita, com ênfase no pop italiano e francês resultando numa mistura eclética que une o passado e o presente na perfeição. O destaque inesperado vai para a voz de Chiara Mastroianni, nem sempre afinada na perfeição mas carregada de carisma e emoção na voz.
Marcello Mio, de Christophe Honoré, transforma a incredulidade inicial, de uma loucura anunciada de Chiara Mastroianni, na ressurreição de um ícone do cinema através da persona criada pela actriz. Usando a comédia como âncora, o realizador cria uma tapeçaria emocional marcante onde realidade e ficção se fundem em uníssono numa belíssima homenagem a Marcello Mastroianni há muito desaparecido. Diria não Marcello Mio, como apregoa o realizador, mas Marcello Nostro, para a eternidade.