Mãos No Fogo (2024)

de Pedro Ginja

Margarida Gil não é nova por estas andanças da realização. Desde a sua estreia com Relação Fiel e Verdadeira (1989) que é igualmente notada pela sua visão nem sempre consensual, mas única no modo como alia a sua paixão pela literatura e pelo cinema, numa combinação à qual é impossível ficar indiferente. A própria realizadora diz gostar de “tirar o tapete às pessoas”, e este Mãos no Fogo não será excepção. No início do ano de 2024 foi selecionado para a 74ª Edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim na secção Encounters, onde se encontram trabalhos ousados e em que se procura caminhos de inovação na Sétima Arte. Correcto no lado provocador, mas no território da inovação não colocaria as minhas mãos no fogo.

Maria do Mar (Carolina Campanela) viaja pela região do Douro e Minho a documentar antigos solares para a sua tese da universidade. Com uma crença inabalável no cinema e na busca da verdade, acaba por colocar os seus valores em causa quando a última das casas que visita esconde segredos terríveis e mentiras por desvendar.

E que casa descobriu Margarida Gil para esta produção em Ponte de Lima, parecendo perdida num tempo que ela própria nunca quer realmente revelar, adensando o clima de mistério da narrativa. Em cada canto escuro, porta entreaberta ou longo corredor, estão espelhados os segredos dos seus habitantes também eles “contaminados” por essa aura de secretismo que deixa o espectador sempre com mais perguntas do que respostas. É por isso a “personagem principal”, mas não é a única que é memorável. Também Rita Durão, como Lou, a perceptora das crianças da casa carrega a dor nos seus olhos. Tudo isto é fruto do seu enorme talento e coragem para colocar a nú esta personagem e as suas inúmeras nuances e traumas tão próprios. O facto de ser alguém tão único só aumenta o fascínio pelo brilhante trabalho de Rita Durão. Infelizmente Carolina Campanela, como Maria do Mar, a personagem principal do filme, não impressiona ou deixa a sua marca, como deveria, principalmente nos momentos mais intensos e dramáticos. Inclusive no lado dos actores secundários há uma enorme discrepância, como por exemplo Marcello Urgeghe, como Leonardo, que consegue transformar qualquer diálogo em pura arte de representar; ou Adelaide Teixeira como Céu, a cozinheira, e eterna colaboradora de Margarida Gil, que cria mais uma personagem fascinante na sua obra. Parte anjo da guarda, parte diabo e também ela, como todos nesta casa, com o seu lado obscuro. Os restantes, por inexperiência ou duvidosa escolha de casting, prejudicam a verosimilhança da narrativa e dos diálogos que parecem nunca lhes pertencer.

O sentimento de desconforto é uma prioridade na narrativa escrita por Margarida Gil, assim como uma aura de mistério que parece cultivar. Não é de todo um tempo muito agradável para o espectador, mas parece haver um fio condutor bem pensado para a narrativa pelo menos durante a introdução das personagens principais. Com a adição de um maior número de personagens secundários e fruto do crescendo de interacções entre as mesmas, acaba por originar uma grande oscilação da qualidade dos diálogos resultando em alguns momentos constrangedores. Ora estes provêem de momentos cómicos falhados, em expressões datadas ou infelizes, e pela ausência de sentido ou objectivo claro para certas cenas no filme. A principal de referir é um breve interlúdio amoroso para Maria do Mar como forma de alívio da tensão que tão bem se estava a construir, desviando a atenção e criando outra ramificação inútil na história que desaparece sem deixar rasto, para permitir uma conclusão anunciada mas demasiado apressada.

Impossível não referir a fotografia de Acácio de Almeida que explora as sombras nos recantos da casa e reforça o mistério com o inteligente uso da luz natural, com destaque para as belíssimas naturezas mortas, a relembrar quadros renascentistas em que o contraste da luz e sombra entre o objecto fílmico e o fundo dá volume e um impacto maior a tudo o que é filmado.

Mãos no Fogo tem as suas fundações no Cinema Novo Português, nos seus defeitos e nas suas virtudes, e não consegue fugir da sombra de um passado em que o que era considerado vanguarda é agora datado e demasiado fechado no seu casulo. No entanto, não há como negar o excelente trabalho de cenografia e fotografia, assim como a brilhante interpretação de Rita Durão que justificam, por si só, este estudo sobre verdade, cinema e o mal que escondemos em cada um de nós, de acordo com a visão de Margarida Gil.

2.5/5
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