Mank (2020)

de Rafael Félix
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Ao passarinhar por algumas críticas de Mank, nacionais e além-fronteiras, pode encontrar-se um padrão que podemos considerar “generalizado”. Isto é, que o 11º filme de David Fincher, com argumento escrito pelo falecido pai, Jack Fincher, é uma “carta de amor a Hollywood” e variantes espampanantes desta mesma manchete. Respeitosamente, Mank é, no mínimo, uma carta a anunciar o fim de um romance fugaz mais do que uma nostálgica declaração de afetos.

O filme centra-se no processo de escrita do guião de Citizen Kane (1941) pela mão de Joseph Mankiewicz (Gary Oldman), alcoólico, filantropo, problemático e com o típico narcisismo inerente a qualquer homem do meio do artístico, enquanto recorda a sua vida na Hollywood a passar a sua fase de transição para os talkies nos anos 30.  

Muito se tem dito nalguns círculos, que Mank peca nas liberdades dramatúrgicas tomadas, nos exageros e invenções, nas omissões e interpretações enviusadas que retrata sobre o making-of daquele que, para muitos, é o melhor filme de sempre. Um legado destes vem sempre com uma bagagem que com certeza Fincher reconhecia inicialmente. E isso é por demais aparente quando percebemos que este era exatamente o filme que Fincher queria fazer. É percetível pelos diálogos rápidos e afiados, várias vezes descontextualizados e, se formos honestos, pontualmente difíceis de seguir, que Fincher está menos preocupado com a veracidade puramente factual ou até mesmo com a compreensão analítica alheia, dando maior prioridade a outras coisas. 

Por isto, voltemos então à questão da “carta de amor a Hollywood”. Toda a construção de Mank desmonta-se numa dicotomia interessente entre a nostalgia pela Los Angeles dos anos 30 e 40 e as circunstâncias do meio cinematográfico do novo milénio. Se por um lado a banda sonora de Trent Reznor e Atticus Ross larga os sintetizadores de Social Network (2010) ou de Gone Girl (2014) para abraçar apenas instrumentos contemporâneos de Mankiewicz e Welles,  a mistura de som cacofónica remete para esse mesmo período e a estrutura narrativa está claramente ligada à do filme de 1941; por outro lado, o monocromático de Mank é orgulhosamente digital e também digitalmente manchado de forma a parecer celuloide, mas sem as sombras carregadas de Citizen Kane ou o Academy Ratio de 1.33:1 que prevaleceu no cinema até aos 50. É como se Fincher não estivesse a fazer um filme que procurasse ser um filme dos anos 40, e estivesse, isso sim, a fazer um filme que por sua vez fazia de conta que era um filme dos anos 40. Toda a teatralidade e brilhantismo das performances do elenco indicam isso mesmo, como se o desenrolar das cenas retratasse o passado, parecesse o passado, mas de uma forma tudo menos acidental, refletisse o presente. Aquilo que Fincher retrata, não é de forma nenhuma amoroso, muito menos é entregue com um sentido de reverencia que tem marcado presença nos filmes que se passam no mesmo período temporal. Pelo contrário, a maioria das pessoas que o argumento de Jack Fincher retrata, são oportunistas, tristes, cansadas, frustradas e permanentemente participam em jogos de interesses que ligam os grandes estúdios às manobras políticas e guerras de costumes e ideais, não sendo de forma nenhuma diferente da Hollwood de hoje. 

Mas com isto levanto uma questão. Questão essa que, a título pessoal, dificulta muito o trabalho de escrever sobre Mank. É me difícil dizer sobre o que é Mank. Sim, é sobre um escritor completamente esquecido pela história – partilhando aqui algumas semelhanças com Jack Fincher – mas não é só isso. Mesmo a forma como a personagem titular é representada é pouco clara, tanto nas suas motivações como nas suas crenças, mas não penso que seja tanto uma falta de qualidade do guião, mas sim uma escolha consciente de colocar Mankiewicz num equilíbrio moral precário e solto de forma a ser mais natural vê-lo flutuar através da mecânica gargantuesca que é o “negócio de Hollywood”. Ou será que tudo isto é secundário e aquilo que Fincher quer é trazer justiça ao papel do escritor? Ou então expor, tanto quanto possível, a fragilidade artística daqueles que conhecemos como “gigantes”? Pode até ser sobre isto tudo. Mas digo-o com dúvidas no espírito, porque Mank fez-me enfrentar a fragilidade da minha aceitável inexperiência e fez-me perceber que terei de regressar algumas vezes até conseguir tirar conclusões mais coerentes sobre o seu teor. Mas algo me diz que há aqui uma obra-prima escondida, que se vai revelar com o passar dos anos. Meus ou do filme, não sei bem dizer.

Com tudo isto, fica claro que Mank é um dos filmes mais peculiares de David Fincher. É leve mas nunca simples e tem um olhar único sobre o cinema e sobre os artísticas negligenciados pela história. Olhar esse que talvez os fãs do realizador não estejam à espera, visto que esta é a mesma mente que trouxe alguns dos filmes mais psicologicamente opressivos dos últimos 30 anos e o tom presente aqui é novo aos filmes de Fincher. É também de referir que um trabalho que passa tanto do seu tempo a criticar a mecânica dos estúdios e a contenção da criatividade, ser recusado durantes anos por esses mesmos estúdios e ir parar à Netflix é como se o Universo estivesse a equilibrar a balança cósmica. É poesia. 

Jack Fincher só pode estar orgulhoso, onde quer que esteja.

4/5
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