MALIGNANT VS. O Tumor Cinemático

de João Iria

Eu não sei o que dizer acerca deste filme. Esta é, possivelmente, a pior forma de iniciar uma crítica e o motivo principal desta se ter transformado num artigo analítico. Não tinha a capacidade de transcrever os meus pensamentos em relação a esta longa-metragem, sem mencionar o escopo completo da sua existência simbólica e o seu significado pessoal. É uma reação natural a qualquer visualização cinemática. São experiências emocionais com um processo artístico e criativo que exige milhões de dólares, equipas de milhares de pessoas e imenso tempo de produção que nunca será suficiente. A sétima arte expande todos os elementos artísticos para contar uma história e transmitir sensações pessoais que afetem uma audiência geral. O trabalho de um crítico é debatível mas é fundamentalmente identificar a essência desta criação e transcrever os sentimentos causados num texto para um público, através de conhecimento e do seu próprio investimento individual. Uma obra que precisou de anos para ser completada é resumida em duas horas e um texto de mil palavras. Parece despropositado. 

Admito que é absurdo descrever Malignant (2021) como se fosse uma das melhoras obras cinemáticas de sempre tipo 2001: A Space Odissey (1968), afinal, é um filme que inclui a fala “It’s time to cut the cancer” enquanto a câmara faz um zoom exagerado no rosto da personagem e a banda sonora atinge proporções de um Ozzy Osbourne esfomeado por morcegos. Peço a vossa paciência e compreensão para este texto porque existe um propósito atrás destes parágrafos. Isto não é uma crítica, não é uma exatamente uma análise ou um artigo, é um apelo (meio pretensioso, as minhas desculpas) ao cinema e à audiência.

Poster de Malignant influenciado pelo género Giallo

Supostamente, Malignant (2021) é sobre uma mulher que começa a sonhar com assassinatos que ocorrem simultaneamente na realidade. Revelar mais que esta simples sinopse seria retirar o elemento surpresa que surge da demência que James Wan atribui ao que primeiramente aparenta ser um blockbuster de horror comercial. Numa mixórdia de ideias, o realizador, famoso por iniciar franchises de terror populares como Saw (2004), Insidious (2010) e The Conjuring (2013), opta por um caminho surpreendente na sua última entrada no género, utilizando um orçamento de 40 milhões de dólares (raro nesta categoria) para desenvolver uma espécie de filme tresloucado, sem a supervisão habitual de produtores a tentarem conter a loucura num produto digestível, com a confiança de alguém que entregou dois filmes de receitas superiores a 1 milhar de milhão. 

Wan concebe uma homenagem ao género B-Horror e às suas produções de baixo orçamento, executadas fora do sistema de Hollywood, celebradas pelas suas ideias irreverentes, overacting ou performances amadoras que atribuíam um senso de irreal à história e visuais peculiares com propriedades idiossincráticas cuja origem podia surgir através de exploitation barato e rápido de vender como também de um desejo artístico revestido de ingenuidade estética. Esta é provavelmente o mais próximo que vou alcançar da descrição ideal de Malignant (2021), uma longa-metragem acompanhada por traços característicos de Giallo, efeitos visuais grotescos e movimentos de câmara tão dramáticos que provocariam lágrimas de orgulho em Peter Jackson e Sam Raimi; à primeira vista podia ser considerado como um dos piores filmes do ano, não fosse pelo espetacular, insano, doido e desvairado terceiro ato que emerge para colocar um sorriso de boca aberta, sem parar, durante 40 minutos e para comprovar as intenções mencionadas do realizador. Se a Warner Brothers decidisse financiar o catálogo da Troma Entertainment este seria o resultado. 

O antagonista de Malignant

Um debate pela qualidade e os propósitos criativos de Malignant (2021) irrompe com reações confusas e negativas, principalmente pelas suas escolhas. Após uma divertida introdução que estabelece os objetivos referidos, a seguinte hora reverte para cenários genéricos com sequências que incluem set ups típicos de jumpscares, enredos dramaticamente disparatados e escolhas técnicas simplesmente estranhas como a inclusão instrumental de uma música icónica na banda sonora em momentos, presumivelmente, penosos e uma iluminação maioritariamente desconexa (com umas exceções) do visualmente vibrante, Giallo. São decisões que desorientam a direção e disfarçam a narrativa como uma comum do realizador, sem o seu discernimento ou apelo comercial, que acabam por afastar uma audiência pouco familiar com o valor dos trabalhos de Lucio Fulci ou Frank Henenlotter. Somente quem estiver disposto a aderir à insanidade é que entenderá que as gargalhadas são com o filme, não acerca dele. 

Aliás, esta escolha concede uma conclusão que revive o espírito semelhante de um jovem a assistir o seu primeiro B-Horror, na televisão, às escondidas, pela madrugada, desinteressado na lógica e fascinado pelo conteúdo. Recorda o engenho inventivo do Terror, ilimitado na sua imaginação, destemido na sua execução e determinado a aceder à depravação humana, mesmo sem meios para uma produção decente, sem medo de atingir o ridículo. Pode ser influência da minha paixão pela audácia de cineastas ainda mais alucinados como Sion Sono ou Takashi Miike mas numa última década em que o cinema de grandes estúdios cai cada vez mais no seguro, sem distinção ou escolhas visionárias arriscadas, encontrar esta longa-metragem, disposta a fracassar, foi refrescante. Principalmente por ser James Wan, um nome simbólico de qualidade associada ao género, incluído em todos os meios de marketing até onde não existe o seu envolvimento criativo, com uma filmografia apreciada, a atirar o bom-senso contra a parede no que será considerado por muitos como nonsense absurdo, apesar de ser claramente esta a sua intenção. O realizador tem uma lista de contactos com alguns dos melhores atores atuais e narrativas que demonstram uma mínima compreensão e talento; acredito que merece o benefício da dúvida pelos espetadores.

Por isso, questiono, como classificar o valor de uma narrativa perante as intenções de um criador? Saliento que é inevitável existir uma avaliação emocional predominante na conclusão de uma história, todavia, acredito que é necessário recordar as inúmeras obras ignoradas nas suas estreias porque não foram compreendidas. Seja uma comédia de terror como Jennifer’s Body (2009) acerca de abuso de poder e toxicidade, inicialmente encarado como vápido, ou até uma das melhores criações do género como The Shining (1980), atualmente considerado um clássico. Malignant (2021) não tem o poder temático de Karyn Kusama, muito menos de Kubrick – as suas ideias de dualidade humana são, no máximo, superficiais – não tem a beleza surreal de Suspiria (1977) ou a criatividade de The Evil Dead (1981) ou a introspeção maníaca de Noriko’s Dinner Table (2005); é um bicho de duas cabeças, consciente daquilo que deseja conquistar e da sua natureza, destacado pela sua sensibilidade cartoonesca. Novamente, como é que podemos qualificar a competência de um filme inspirado pelo que é considerado irredimível na industria?

Annabelle Wallis como Madison Mitchell em Malignant

Quando as luzes acendem, tudo o que resta é a oportunidade de reflexão na história e no que sentimos. Bom? Mau? O que importa? É inclassificável, simultaneamente subjetivo e pragmático. Acredito que a escrita é um elemento artístico e lamento a minha inaptidão ortográfica, apreciava atingir a poesia lírica de autores como Camões, apesar de não partilharmos absolutamente nada em comum, nem o mesmo número de olhos. A minha forma de expressar é confusa, como se as palavras estivessem coladas umas às outras, a separarem-se com a velocidade de uma depilação com cera; a minha escrita é isto, depilação de palavras do meu cérebro, com cera. Através da minha paixão pela sétima arte, tento expressar o que sinto, enquanto procuro compreender o que vislumbrei. Estou consciente do absurdo que é escrever este texto acerca de Malignant (2021) e hei de possivelmente arrepender-me por não atribuir semelhantes palavras a obras primas favoritas como Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004) mas é o que sinto neste preciso momento. Saudades de um cinema comercial arrojado que arrisca o fracasso com visões únicas e assistir James Wan a tentar replicar essa experiência, com budget suficiente para saciar a sua insanidade, é admirável. 

Isto não é uma crítica, ou uma análise ou exatamente um artigo, é um apelo. Um apelo para cineastas arriscarem nos seus conceitos estranhos, dispostos a fracassarem perante a audiência, conscientes que sucederam em criar algo singular. Um apelo para o público aceitar a loucura e o excêntrico como normal e explorarem estas visões forasteiras. Nos anos 80, a morte do género B era prevenida pelo terror, e o estigma de identidade como produtos dispensáveis voltou a desaparecer com a sua popularidade, através da necessidade de histórias diferentes, desconfortáveis, divertidas, detestáveis e sobretudo distintas. Atualmente, indies escapam ao sistema de estúdios enquanto blockbusters são retidos do seu potencial, por isso como é que posso olhar para alguém a tentar fazer algo invulgar (seja sucesso ou fracasso) e retirar-lhe incentivo quando todos os outros limitam-se a desenvolver entretenimento uniforme. 

“To me, B movies today are the crap Hollywood’s releasing, but they’re not doing it on a B movie budget”.

Não partilho completamente o mesmo sentimento desta citação de Frank Henenlotter, contudo, compreendo e concordo o suficiente para permanecer uma preocupação minha acerca de uma indústria que aposta no seguro, onde visões artísticas são destiladas no genérico como um tumor cinemático que reside nos estúdios e cresce com o sucesso financeiro de permitir que previs digital domine uma produção inteira, antes sequer de existir uma equipa técnica, ou de encarar a sétima arte como conteúdo supérfluo. A minha esperança é que este texto suscite interesse nos leitores em providenciar oportunidades a Malignant (2021) e a outros projetos semelhantes porque a única forma de alterar Hollywood é com a carteira, e para atingir essa transformação, é preciso seguir o exemplo desta obra demente e exclamar: “It’s time to cut the cancer.”

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