Mal Viver / Viver Mal (2023)

de Pedro Ginja

É impossível dissociar os dois últimos filmes de João Canijo um do outro. Funcionam como uma unidade justaposta de histórias comuns e que partilham a mesma origem – Um díptico. Filmados em pleno período pandémico, ambos foram fruto de um esforço conjunto da “família” cinematográfica de Canijo. O aumento das restrições pandémicas levaram a um crescendo de ansiedade e de tempo passado juntos a filmar num hotel de Ofir, ele próprio com a sua própria personalidade. Charme e decadência (por vezes parece assombrado) é a primeira impressão de uma das peças chave desta trama. É inegável o seu impacto e o papel na narrativa, parecendo transportado de uma outra era. Em Mal Viver centramo-nos na história de 5 mulheres, com conflitos internos por resolver, que gerem o hotel enquanto na história de Viver Mal o argumento vira-se para os problemas pessoais dos clientes que o habitam. Algo só possível de existir devido aos factores referidos anteriormente, e quem ganha é o espectador.

Mal Viver

João Canijo passa o tempo com este grupo de 5 mulheres, todas elas da mesma família e com uma tragédia que partilham entre si. O catalizador da história é Salomé (Madalena Almeida) de regresso a uma “casa” que tinha abandonado. Existe mágoa e assuntos por resolver, principalmente com a mãe Piedade (Anabela Moreira). Ambas sustêm o argumento de forma irrepreensível, com uma crueza nas palavras, nos gestos e, em maior medida, nos silêncios tão difíceis de digerir. Sara (Rita Blanco) é a avó a tentar unir a família mas sem saber como o fazer. É, também, uma mãe com o coração partido e uma profunda mágoa, transformada em frustração e violência. Rita Blanco, qual musa de Canijo, é sempre melhor com ele. Raquel (Cleia Almeida) e Ângela (Vera Barreto) completam a família e parecem viver num universo paralelo mas são tão complexas e únicas como as outras mulheres deste universo. Em comum a todas elas um amor imenso mas uma total incapacidade de o demonstrar. A verdade, sem filtros, é o ponto comum a todas estas mulheres, e revela a nossa inabilidade de perdoar e esquecer. Acaba sempre por vir à tona.

O trabalho de câmara e de luzes é inspirador, com belíssimas composições e um extraordinário uso de luz, alguns planos lembrando quadros de Edward Hopper. Certas composições recordam Rear Window (1954) em que o voyeur em nós não resiste em olhar para cada um daqueles quartos de hotel. Vejo também Bergman na maneira como trata as relações, livre de julgamento, mas sem pudor de mostrar o “podre” que habita em cada um. A preparação meticulosa dos planos e dos movimentos de câmara, sempre por mais tempo do que deviam, é propositado e tem como objectivo a provocação de conflito e aumento de tensões latentes na história. Há constantes sobreposições de imagens, com o uso de espelhos ou janelas, e também de sons, que partilha com Viver Mal, de uma complexidade, por vezes, exasperante mas recompensadora para quem entra neste “mundo” de João Canijo. Para além da tensão há um escalar da inabilidade de comunicação, com destaque nas protagonistas, que lentamente parecem transformar-se em fantasmas errando pelo hotel.

Viver Mal

Enquanto Mal Viver é uma história única, este Viver Mal divide-se em 3 actos, bem mais dentro do universo de Strindberg. Baseado em 3 famosas peças de Strindberg – “Brincar com o Fogo”, onde Jaime (Nuno Lopes) e Camila (Filipa Areosa) são um casal num triângulo amoroso. Na segunda, “O Pelicano”, fala de Graça (Lia Carvalho) e Alex (Rafael Morais), um casal onde não existe amor e uma mãe (Leonor Silveira) que controla ambos a seu belo prazer. A terceira conclui com “Amor de Mãe” onde Judite (Beatriz Batarda) anseia por destruir a nova relação da filha, Júlia (Leonor Vasconcelos), com Alice (Carolina Amaral). Não repete todas as personagens presentes nas 3 peças referidas mas há referência a todas seja por menção em diálogo ou através de telefonemas em que a voz ganha um protagonismo, para além do corpo. As mães, também aqui, dominam a narrativa com interpretações muito intensas de Leonor Silveira e Beatriz Batarda.

Como adição à narrativa principal de Mal Viver, este Viver Mal vive de um formalismo reverente a Strindberg e cria uma tapeçaria de histórias paralelas que se “alimentam” do drama principal. O factor secundário destas narrativas, perante o poder dramático de Mal Viver, não retira o poder de cada peça mas adiciona ainda mais complexidade e a uma necessidade maior de nos embrenharmos na narrativa. O custo/benefício desse investimento é inegável. A nível visual a história tripartida permite uma maior variação nas decisões sobre luz e movimentos de câmara. Mantêm-se os long shots e os close-ups alternados mas existem agora relações amorosas que permitem à câmara “acariciar” os corpos. A nudez está mais presente, mas nunca gratuita, e Leonor Teles pinta os corpos como se de quadros se tratassem, tornando a direcção de fotografia bem mais empolgante na visão dos clientes do hotel. O desejo e a luxúria (quase ausentes em Mal Viver) passam a ser sentimentos presentes para além da constante aura de tristeza e tensão de Mal Viver e por isso é justo dizer que há mais para decifrar neste filme.

No final das quatros horas, de ambos os filmes, o sentimento é de deslumbramento pela obra criada por João Canijo e iluminada por Leonor Teles. O elenco, carregado de talento, é extraordinário no todo e potenciado ao sublime pelas circunstâncias no momento das filmagens. Canijo sempre foi bom mas nunca assim tão bom.

5/5
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