No livro Sleaze Artists: Cinema at the margins of taste, style and politics (2007), o historiador cultural Jeffrey Sconce afirma que os cinéfilos preferem falar mais sobre o que amam em filmes maus do que nos bons. E, de facto, a sétima arte não é feita apenas de excelência técnica e complexidade narrativa. Há muitos outros factores que fazem com que as pessoas se conectem com obras cinematográficas, como o sentimentalismo, idolatria por certo ator ou atriz e até mesmo um entretenimento mundano que as faça desligar o cérebro por umas horas. Dito isto, não tenho vergonha em admitir que a experiência de assistir a Madame Web foi divertida, refrescante, inofensiva e que me fez reflectir sobre as mudanças que ocorreram no cinema faz duas décadas.
O começo do século XXI foi marcado pela incorporação do realismo em produções antes consideradas fantasiosas, como os filmes de super-heróis. Esse movimento iniciou-se com a saga X-Men (2000-2006) e foi sacramentado como sucesso de crítica e bilheteira com a trilogia Batman de Christopher Nolan (2005-2012), bem como com o universo cinemático da Marvel. Um dos motivos históricos para a ascensão dessas produções foi a crise financeira em que o mundo, em especial os Estados Unidos, mergulhou nos anos 2000, em que o público ansiava por uma fuga da realidade ao mesmo tempo que “se queria ver” nas grandes telas. Assistir ao antigo conflito simplista do bem vencer o mal com uma roupagem moderna foi extremamente apelativo para o espectador, ainda mais com o avanço dos efeitos especiais e o casting de atores competentes que o faziam mergulhar ainda mais nesse novo conto de fadas.
Contudo, a fórmula foi-se desgastando com o passar dos anos e podemos afirmar que o género de filmes de super-herói está em crise. Não há como sustentar esse universo fantasioso ao mesmo tempo que tentamos encaixá-lo no real, até porque o contexto social e económico também mudou. O público agora procura o realismo noutro tipo de filmes, que contam histórias reais ou fictícias, que não se apoiam no super-humano. Queremos ver-nos não como deuses, mas como pessoas normais, e essa transformação está a afetar as últimas longas-metragens deste tipo, que resultaram em fracassos absolutos de bilheteira e crítica como The Marvels (2023), The Flash (2023) e Aquaman 2 (2023).
Agora deparamo-nos com Madame Web, que se ergue como uma produção completamente diferente de tudo aquilo que foi visto neste século. Isso porque se assemelha a filmes de super-heróis da década de ’40 até ’90, em que tudo é fora da realidade e até espalhafatoso. Além disso, consegue ser uma calamidade em todos os quesitos técnicos que constituem uma longa-metragem, ao mesmo tempo que todos esses erros se juntam para construir uma jornada absurdamente hilariante e envolvente. Acaba assim, por surtir o mesmo fenómeno que acontece com obras que hoje são consideradas alvo de culto por cinéfilos por serem tão más que se tornam boas, como The Room (2003), Plan 9 from Outer Space (1959) ou Troll 2 (1990).
Em Madame Web, a jovem paramédica Cassandra Web (Dakota Johnson) começa a ter alucinações após sofrer um acidente grave no trabalho, que logo se revelam ser premonições sobre o futuro. Esse novo dom faz com que salve três adolescentes (Sydney Sweeney, Isabela Merced e Celeste O’Connor) de um ataque mortal no metro, mas também a coloca na mira do vilão Ezekiel Sims (Tahar Rahim), que está a perseguir as jovens que, no futuro, serão super-heroínas e o vão matar. Como se pode perceber pela sinopse, Madame Web é uma embrulhada. E o mais impressionante é que vem de uma sucessão de embrulhadas que estão a ser lançadas pela Sony, que adquiriu os direitos do universo do Homem-Aranha e está a lançar filmes que num momento estão conectados e noutro, não possuem qualquer ligação. O último lançamento foi o infame Morbius (2022), que conseguiu ser um fracasso tão retumbante de crítica e público, que ganhou fama precisamente por isso, sendo considerado um dos piores lançamentos de 2022. Depois desse fiasco, o plausível seria a empresa se re-estruturar completamente para o seu próximo projeto, mas não: mantiveram os argumentistas e apenas trocaram a realização, agora nas mãos de S. J. Clarkson.
O diferencial entre esses dois lançamentos da Sony, é que a precariedade de argumento de Morbius faz com que o filme se leve muito a sério e acaba por ficar tedioso, enquanto que em Madame Web, as personagens comportam-se como seres humanos à beira de um ataque de nervos, resultando em situações hilariantes e estapafúrdias, que se agregam ao tom mais leve da história. Um exemplo disso é que a obra tenta reforçar várias vezes que a protagonista é anti-social e com traumas familiares e, para isso, colocam-na a agir sem um pingo de inteligência emocional em situações normais. Há também momentos quase alucinogénicos que envolvem um dos patrocinadores do filme: a Pepsi. Ao invés de construir uma situação em que o produto aparece de modo natural, a bebida é oferecida à protagonista, que diz com todas as palavras que preferia uma cerveja em vez do famoso refrigerante. E, mesmo assim, continua a segurar a lata por uns cinco minutos sem tomar um único gole, mas sempre mostrando o logótipo. É inacreditável e, ao mesmo tempo, hilariante.
A história tem várias quebras de ritmo que chegam a surpreender o espectador de tão inusitadas e inverosímeis, como o momento perto do clímax do filme em que o conflito está no seu ápice, e Cassandra pára tudo o que está a fazer e viaja para o Perú no intuito de se reconectar com a falecida mãe e controlar os seus poderes de clarividência. Parece mais uma ida ao Pingo Doce para fazer compra, do que propriamente uma deslocação a um país a milhares de quilómetros de distância, e ainda voltando no momento exacto em que o vilão decide realizar o confronto final.
Em termos de actuação, todos os envolvidos estão em modo piloto-automático, excepto o antagonista. Tahar Rahim consegue compor um vilão completamente deslocado do tom do filme, tentando ser sério e perigoso, mas falhando miseravelmente em ambos. Aliás, esse é o único elemento que destoa, pois o resto do elenco parece estar a divertir-se genuinamente com a história. Sydney Sweeney está sempre muito bem em qualquer projeto que se envolve e neste consegue acompanhar as quebras bruscas de ritmo que o argumento apresenta. Consegue ser engraçada, inocente, rebelde e emocional sempre que precisa de o ser. O verdadeiro acerto, no entanto, é Dakota Johnson. A actriz possui expressões e trejeitos naturalmente sarcásticos, fazendo o seu natural soar quase como um deboche para todas as parvoíces que a sua personagem provoca e enfrenta.
Para concluir, Madame Web é a perfeita intersecção entre desastre em quase todos os campos técnicos e uma obra extremamente divertida, que nos deixa entretidos do início ao fim. As bizarrices que nos são apresentadas arrancam risadas nervosas porém genuínas. O meu palpite é que a Sony pode estar a investir num universo de filmes camp, ou seja, que são propositadamente péssimos e cómicos, a visar um público específico e fiel aos seus lançamentos. Sei que estarei atento aos seus próximos projetos.