Love Lies Bleeding, de Rose Glass, é um filme particularmente difícil de pontuar, uma vez que não basta avaliá-lo através da questão de uma qualidade objetiva. Qualidade o filme tem, sem qualquer dúvida, mas, pela sua marcada idiossincrasia, só irá agradar por completo a pessoas que partilhem os mesmos interesses estéticos, temáticos e cómicos da sua realizadora. Pode-se também discutir sobre se o filme realiza com sucesso aquilo a que se propõe, mas a resposta seria também inteiramente subjetiva. Em suma, Love Lies Bleeding pode falar para um público específico, mas qualquer espectador que aprecia a arte do cinema consegue reconhecer-lhe todo o mérito.
Contando com Kristen Stewart, Katy O’Brian, Ed Harris, Jena Malone, Dave Franco, e Anna Baryshnikov no elenco, Love Lies Bleeding tem como cenário uma pequena cidade no estado americano de New Mexico no final dos anos ’80. Lou (Stewart), a solitária gerente de um ginásio com um passado complicado, conhece e apaixona-se por Jackie (O’Brian), uma fisiculturista que escolhe aquela cidade como ponto de paragem, a caminho de uma competição em Las Vegas. Com o incentivo extra das doses de esteróides que Lou fornece a Jackie, a relação e a paixão entre as duas começa a absorver a vida em seu redor, acabando, à medida que segredos pessoais e familiares vêm ao de cima, por levá-las a extremos para se protegerem uma à outra.
Tudo funciona e encaixa na primeira parte do filme para criar uma unidade inteiramente consciente e confiante da sua identidade: a fotografia neo-noir saturada que usa a luz, as sombras, e as cores por elas originadas, para enquadrar uma cidade que desde logo parece esconder uma face pervertida; a banda sonora que mistura e experimenta com silêncios desconcertantes, sons alienígenas, baixos reverberantes, e músicas da época; a realização de Rose Glass, que, como um maestro e a sua orquestra, está completamente sintonizada com um ritmo que categorizo como “falso lento,” permitindo às cenas respirar, ao mesmo tempo que as injeta com grandes planos ou flashbacks curtos e altamente estilizados, que servem para alimentar a tensão e a promessa da aproximação de uma libertação ou explosão.
Por fim, também a química entre as duas protagonistas, na fase particularmente sensual do início de uma relação, com toda a sedução, flirt e ansiedade que a mesma pede, contribui para uma primeira parte de filme extremamente forte. Para Lou, Jackie é uma lufada de ar fresco, um milagre da natureza que foi depositado na sua vida para a tirar do transe aborrecido da sua vida solteira e solitária. Para Jackie, Lou é um porto de abrigo, alguém tão ostracizado pela sociedade como ela, ainda que por razões diferentes, que a compreende e a ama pelas razões certas. É fácil, então, para as duas, esquecer a razão e mergulhar nos sentimentos eufóricos provocados por esse momento único.
Esta afinação tonal torna-se mais errática e dispersa à medida que o filme avança e a própria história se torna também ela mais errática e dispersa. São de admirar as decisões corajosas que Glass e a sua coguionista Weronika Tofilska fazem na última hora do filme, levando-o de um thriller neo-noir erótico e violento na tradição de Fincher e Cronenberg, para um realismo mágico mais parecido a filmes de fantasia ou super-heróis. Desde o início que Glass faz questão de deixar pistas sobre o rumo que o filme vai tomar, mas, ainda assim, este acaba por ir mais longe do que se poderia imaginar. Por muito arrojadas e deslocadas que estas escolhas possam ser, arriscando quebrar o bom trabalho feito na primeira metade do filme, é a sua inerente relação ao tema principal do filme – a fisicalidade – que as consegue ancorar.
Todo o filme é uma carta de amor ao corpo feminino e às suas possibilidades. Leva a noção da mulher forte e destemida do cinema americano ao seu excesso. A ideia da estrela de ação feminina, que consegue defender-se e lutar mano a mano com os homens, e fá-lo sempre em roupas minúsculas, de forma sexualizada, é aqui perspicazmente subvertida. O corpo feminino mantém um papel principal, mas a forma como a realizadora o enquadra e trabalha através da personagem da Jackie – que enquanto bodybuilder exercita e trata o seu corpo de forma tradicionalmente masculina – mais parece vir de um lugar de celebração do que de objetificação. Há, sim, uma sexualização de Jackie, mas está mais ligada ao fascínio das possibilidades infinitas do corpo feminino, do que ao desejo de subjugação e de poder, que é tão inerente à visão masculina. Há uma sensibilidade queer que pode não ser captável para qualquer espectador, mas que utiliza uma linguagem que nós, mulheres não heterossexuais, todas falamos. Um maravilhamento com a figura feminina que é completamente diferente daquele sentido pelo homem heterossexual, numa mescla entre admiração feminista, atração física, inveja, e uma adoração quase divina sobre a figura da mulher. Love Lies Bleeding é a representação visual e narrativa destes processos variados e, de certa forma, paradoxais.
Mesmo retirando todas estas camadas significativas e temáticas, Love Lies Bleeding continua a ser um filme de ação divertido, sexy, agressivo, romântico e com imenso estilo. A tentativa de Rose Glass de brincar com várias fontes de inspiração e géneros pode ou não ser um tiro saído pela culatra, dependendo do gosto de cada um. O que é, no entanto, e sem dúvida, é uma aposta arrojada e destemida da realizadora britânica e, por isso, também, uma aposta de louvar.