Lost in Starlight (2025)

de Francisca Tinoco

A Netflix estreia-se nas longas-metragens de animação coreanas com Lost in Starlight, um filme de romance futurístico realizado por Han Ji-won (The Summer, 2023). Kim Tae-ri, conhecida pela sua participação em The Handmaiden (2016) de Park Chan-wook, empresta a sua voz à personagem principal, Nan-young, uma astronauta ambiciosa com o sonho de viajar até Marte.

Passado em 2050, numa Seul banhada a neon e coberta por publicidades holográficas, mas mantendo as suas típicas construções humildes no topo das suas sinuosas colinas, Lost in Starlight define-se pela promoção de um diálogo entre o passado e o futuro, o analógico e o digital. Essa relação é evidenciada quando Nan-young procura, sem grande sucesso, alguma loja que lhe conserte um antigo gira-discos que herdara da mãe. Quase pronta para desistir, à saída de uma loja de eletrónica, a jovem astronauta choca, literalmente, contra um rapaz, Jay, que se oferece para lhe compor o objeto. Sendo Jay dobrado pelo ator Hong Kyung, o filme é também um reencontro para os dois protagonistas depois de contracenarem na série sobrenatural The Revenant em 2023. Ao aceitar a ajuda, Nan-young, cujo trabalho e paixão giram à volta da vanguarda da tecnologia, mergulha no mundo de Jay, definido por antiguidades como os instrumentos musicais acústicos, os discos de vinil e – as mais surpreendentes das relíquias – um bloco de notas e uma esferográfica.

Pelo meio, enquanto o romance entre os dois floresce, temos direito a referências astutas à cultura pop oriente e ocidental, tais como a música dos BTS ou o ícone do cinema de romance que é Before Sunrise (1995) de Richard Linklater. De facto, quando descobrimos que Jay passa os seus dias a suprimir um amor frustrado por compor música, as parecenças entre o personagem e RM, o líder da banda sensação coreana, começam a tornar-se suspeitas. Mas isso é uma história para outro dia e, talvez, para outro público.

Um dos pontos mais fortes de Lost in Starlight é, precisamente, o trabalho de personagem. Tanto Nan-young como Jay são dotados do tipo de complexidade a que a animação do leste da Ásia, nomeadamente do Japão, nos tem vindo a habituar. A sua relação tem tanto de madura e sensata como de infantil e intensa. Ambos entram em contradições, cometem erros, e percorrem um caminho longe de ser linear, tal como acontece na vida real. O ritmo do filme acaba por sofrer por isso, ficando algo emperrado e repetitivo durante o segundo e terceiro atos. Ainda assim, a evolução de cada um é tão satisfatória e as tangentes na história tão propícias a momentos de animação deslumbrantes, que se torna muito fácil desculpar a falta de fluidez no argumento.

A verdade é que Lost in Starlight é muito mais que um filme de romance, apesar de ser este o aspeto que o tornará mais comercializável. Sim, o contraste entre a evolução futurística e a nostalgia pelo passado é um veículo para conferir à relação central uma aura romântica de yin-yang. No entanto, funciona também como um incentivo a um progresso mais harmonioso, que não descarte com tanta facilidade o caráter sensorial e tátil da tecnologia e, acima de tudo, da arte de tempos passados. A música (o mundo de Jay) surge como o antídoto para o isolamento e frieza da sociedade de 2050 (em muitas formas parecida à nossa) que, por sua vez, é representada visualmente pela imensidão escura do espaço (o mundo de Nan-young). A contribuir para esta dinâmica estão também a banda sonora envolvente, íntima e mágica, produzida por 1of1, e com a participação de artistas coreanos como Kim Daniel e LILAC, e a forma como Han conjuga a estética cyberpunk com um estilo de anime mais minimalista e tradicional.

Finalmente, há, também, no filme, uma forte componente ligada à família que, para além de promover o conflito e crescimento emocionais da protagonista, nos oferece algumas reflexões importantes sobre o papel da ambição feminina na família nuclear e na sociedade coreana em geral. Nan-young, tal como a sua mãe, prioriza a sua carreira, arriscando perder o amor romântico. Mas Lost in Starlight propõe uma alternativa em que esse laço serve para motivar e empoderar cada um, em vez de impor limites. Mesmo separados por milhões de quilómetros, e uma infinidade de estrelas, a comunicação, o apoio, e o amor verdadeiro prevalecem.

Após conquistar a audiência queer com o modesto sucesso de culto do drama sáfico The Summer, com Lost in Starlight, Han deixa claro o seu mainstream appeal, sem nunca pôr em causa a sensibilidade feminina que tem vindo a definir o seu trabalho. Entrega um filme em igual medida desafiante e aconchegante, que agradará tanto aos fãs de ficção científica, como aos fãs de romance, e ao público de anime na sua generalidade. Nasce uma mente e voz que certamente irá dar muitas cartas no futuro da animação coreana que, parecendo que não, ainda está só a dar os seus primeiros passos. E a parte mais entusiasmante é que irá fazê-lo no feminino.

4/5
0 comentário
1

Related News

Deixa Um Comentário