Longlegs (2024)

de João Iria

O Mal Existe. Está sempre presente, vinculado ao nosso mundo. Queremos acreditar desesperadamente que esta malevolência permanece acorrentada a pensamentos fúteis emocionais ou a ideias súbitas desligadas da realidade desfeitas pelo tempo, através de um sentido de moralidade que carregamos na alma. Contudo, sabemos que o mal está inoculado nas árvores, nas ruas, nas casas, em desconhecidos, vizinhos, amigos, familiares, e no nosso próprio coração. Longlegs, a nova longa-metragem de Osgood Perkins, afirma este mal como nativo. É o mero acto de existir que cria uma ligação espiritual com o nosso espaço e os seu habitantes, conectando pessoas que receberam a dádiva de crescer com os indivíduos que perderam essa oportunidade. Inicialmente sentimos esta malignidade como um elemento sobrenatural, recebendo poder através das nossas experiências, do nosso envelhecimento, até eventualmente transformar-se em algo verdadeiro, tangível e físico. Uma realidade infindável.

Um serial killer denominado Longlegs, interpretado por um Nicolas Cage irreconhecível, é imediatamente apresentado à audiência durante o prólogo. Como se a realidade deste universo fosse impossível sem esta fértil impetuosa presença malévola. Contido num aspect ratio de 4:3, aparentando uma fotografia polaroid, a sua tremida e aguda voz escraviza esta paisagem pura, repleta de neve, simbólica de uma inocência apta para ser manchada ou para mascarar sangue. Décadas depois, encontramos a agente especial do FBI, Lee Harker (Maika Monroe), uma jovem com dificuldades sociais, a receber um novo trabalho: investigar uma série de bizarros assassinatos ligados a esta figura, ocorridos durante – ou aproximadamente – o aniversário das suas vítimas infantis. Harker parece exibir misteriosas capacidades psíquicas, suficientes para o seu superior, o agente Carter (Blair Underwood), se apegar às suas habilidades e utilizá-las para capturar esta criatura, invisível para as autoridades.

O mistério de investigação, como a sua história principal, acaba por ser um aspecto diminuto para Perkins que assume o seu enredo mais como um fósforo do que uma chama. Nós sabemos a identidade de Longlegs, portanto o enigma reside na sua motivação, no seu insondável e incompreensível processo, e no seu jogo manipulativo com Harker. Apesar das comparações com Zodiac (2007) ou Silence of the Lambs (1991), esta obra do cineasta demonstra uma atmosfera reminiscente de Cure (1997) de Kiyoshi Kurosawa ou The Shining (1980) de Stanley Kubrick: pesado, indecifrável, desalmado e gélido, um ambiente que arrasta a pele para o fundo do oceano enquanto os pulmões são preenchidos por água e os olhos perdem a sua luz; os nossos corpos mortos pela nossa própria fonte de vida.

Este é o caminho designado para as suas personagens, vidradas num fatal irremissível destino. Quando a imagem expande de uma polaroid para o ecrã inteiro, finalmente possuímos uma plena visão deste mundo, com locais suburbanos que conjuram uma familiaridade supostamente reconfortante. Um frame sente-se como duradouro; a câmara permanece estática com ocasionais movimentos calculados, lentos e precisos, encurralando a protagonista num fado infernal. Os planos de ângulo aberto estabelecem espaços mortos e vazios, atraindo atenção para cantos e para as costas das pessoas, assim evocando uma constante ansiedade pela presença do desconhecido, escondido diante dos nossos olhos. Quando a imagem expande, a inocência desaparece, conhecemos esta realidade e o medo é automaticamente instalado na nossa epiderme. Harker é cercada por um ambiente que aparenta uma serenidade sombria impossível de escapar, consistentemente oprimida pelo universo que a rodeia, reflectido na composição visual, uma sensação prevalente dentro da investigação escoada até à ilusão de privacidade do seu quarto. Os cenários são esquematizados numa edição vagarosamente rítmica e sinistra que interrompe a sua realidade tenebrosa com as visões frenéticas e encarnadas da protagonista, aludindo a um perigo incessante próximo da sua pessoa. Nenhum lugar é seguro. Nenhuma prece ajuda.

Longlegs é dominado por um medo particular: mesmo sozinhos nunca estamos sozinhos. A banda sonora de Zilgi e o design de som assistem nesta percepção atmosférica, mergulhando as suas figuras num baptismo satânico, entrelaçando música com efeitos sonoros. Ambos ocasionalmente indistinguíveis (propositadamente) com ecos de sofrimento, vozes a clamar pelas nossas almas, machados a demonstrar o seu impacto e facas a serem afiadas infiltrando-se na composição harmoniosa de Zilgi. Um tick tock melódico e a estática da solidão invadem o silêncio. Somos vítimas e cúmplices de Longlegs somente pela inevitável experiência de observar e ouvir.

Nicolas Cage, um dos melhores actores da sétima arte, manuseia a sua performance perpetuamente no limiar do absurdo; um trilho que caminha com uma confiança invejável. O seu serial killer é de uma fisicalidade além do humano – o seu rosto similar a uma boneca –, uma escolha naturalmente lógica pois Longlegs abdica da sua humanidade para encarnar a forma de um instrumento. A sua face disforme e a sua tez enevoada com cabelo comprido e encaracolado semelhante a um anjo das trevas, um Lúcifer caído, lentamente a apodrecer neste limbo denominado existência humana. É uma figura grandiosa e arrepiante que suscita horror através de uma imprevisibilidade assustadora e da sua cabalística natureza. Inevitavelmente alguns espectadores podem cair nas gargalhadas, assumindo a sua interpretação como ridícula. Cage compreende o espírito sombrio da sua personagem. Ele compreende que dentro do mal existe um sorriso. Compreende que o coração pára de bater quando o corpo é desarmado. Monroe funciona como o seu contraste: os seus passos decisivos mas retraídos, predominantemente sossegada e muda, isolando a sua identidade exclusivamente nos inquietos telefonemas com a sua mãe. Proximidade é distância para a agente, incapaz de participar numa conversa normal, perdida nos seus pensamentos, códigos e capacidades desconhecidas que se misturam com um passado desfragmentado. A actriz comanda a sua protagonista com uma subtil força extraordinária; o seu vulnerável olhar algemado num negrume, com uma mão na sua arma, continuamente preparada para confrontar a perversidade que a rodeia. O seu questionável poder retém Harker emocionalmente. Ela consegue ver o mundo. Portanto, é incapaz de se envolver neste espaço. Um mundo que comprova a existência de um Inferno e a ausência de Deus.

Longlegs é um suspiro pavoroso que enraíza as nossas mentes e os nossos corpos à maldade humana, salientando a sua ligação com a punição da existência. Para o realizador é uma conexão curiosa pois sendo o filho de Anthony Perkins, Norman Bates de Psycho (1960), terror é a sua casa. O enredo é elevado pela sua potência atmosférica cinemática e a mensagem simbólica que brilha atrás das cortinas. O humor que surge esporadicamente ridiculariza a impotência de uma entidade protectora e de um sistema incompetente, construído para permitir que monstros absorvam casas, cidades, países, a humanidade. Uma pessoa sobrevive. Outra morre. O verdadeiro horror de Longlegs vive nas suas implicações. Diariamente, somos cúmplices de uma crueldade imortal, resgatados por uma sorte alheia, salvos pelos demónios que enfrentamos. O mal existe. É um distúrbio sem fim. Uma tragédia eterna. Feliz aniversário!

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The Monkey (2025) - Fio Condutor 18 de Fevereiro, 2025 - 22:33

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