O bilhete para uma performance, por favor
Talvez um dos filmes que mais tem passado por baixo dos radares nesta época de Óscares, Living é a adaptação britânica, quase remake, do filme de 1952 Ikiru, (também traduzido para Viver em português), realizado pelo grande Akira Kurosawa. A versão ocidental é comandada pelo cineasta Oliver Hermanus e escrita por Kazuo Ishiguro, com créditos de argumento para Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni, argumentistas do filme original. Living conta a história de um burocrata aborrecido e insípido da Câmara Municipal, em plena Londres dos anos 50, que descobre um novo gosto pela vida e decide agarrá-la assim que descobre um diagnóstico negro e cruel da sua saúde.
Toda a sua premissa, bem como grande parte da sua abordagem temática, é retirada do clássico de 1952, com uma pintura ocidental que trabalha com os maneirismos ingleses e o eco político e social da época, no sentido de extrair um propósito sentimental em circunstâncias tão específicas. Essa é tanto uma força como talvez uma fraqueza deste filme. Tem a sua razão de ser quando nos mostra o que um burocrata do governo, rígido e tenso como os cavalheiros ingleses foram ensinados a ser, teria de passar para se poder libertar à vida. Esse ambiente inglês é incrivelmente bem apresentado, quase que esbordando para fora da tela e muito graças ao poder técnico do filme. Consegue nos mostrar o quanto a imposição de uma certa postura e atitude consegue limitar a apreciação da vida quotidiana e a nossa liberdade como seres humanos. É muito bom perceber isso com este fundo de costumes ingleses que tão bem encaixam nesta premissa de alguém que necessita de ver a vida com lentes frescas. O problema é que pode limitar a visão e o espectro deste objetivo temático. Com o propósito de ser um filme que inspira a agarrarmos a vida, sendo esse mesmo um assunto muito geral e algo batido, selecionar um nicho tão pequeno e específico pode alienar alguns espectadores ao verem que alguns dos problemas que o protagonista enfrenta seriam facilmente desnecessários ao apenas aceitar algo tão rotineiro e humano como um sorriso. O filme cria assim uma certa dificuldade em relacionar tão diretamente com o personagem principal, com os que o acompanham ou até mesmo com a situação em si. Mas pode existir outra razão para isso.
Em termos de produto final, Living é muito bonito, às vezes até belo, confortável e familiar. Não há dúvidas que tecnicamente está extremamente sólido com música que nos envolve; montagem que nos leva a bom ritmo e uma fotografia lindíssima com alguns enquadramentos que nos roubam o olhar e um excelente uso de puro digital e imagem de alta definição que tinham tudo para trair o mood da época mas que, de alguma forma, trabalham no sentido oposto a esse. No entanto, esse mesmo ambiente pode ser um fator limitador no que este filme poderia atingir. É, por si só, uma apresentação já conhecida e que já se viu inúmeras vezes, principalmente no meio dos que correm aos Óscares. Basta verem o trailer ou alguns frames para perceberem o que quero dizer com isto. Nesse ponto já perde na sua existência para com o original, com o ritmo mais lento e cuidadoso de Kurosawa e o seu olhar mais atento e inovador a conseguirem trazer algo mais profundo a esta história e entregarem, como um todo, um filme mais interessante.
Tenho, por obrigação inata talvez, de falar sobre a soberba e magnética performance de Bill Nighy. É, com toda a razão e popa, o bilhete de entrada para ver este filme, e deve-se dizer que não desaponta em nenhum ponto. O veterano ator entrega-nos aquele que talvez seja o seu melhor trabalho e fá-lo num registo subtil, despreocupado e inteiramente seu. Quem segue o seu percurso sabe que tem como imagem de marca os seus olhares, maneirismos e tiques próprios, e um certo jeito de atuar muito único e peculiar, a roçar por vezes o extravagante, sendo isso mais evidente na sua representação de Davy Jones na saga Pirates of the Caribbean. Mas, dito isto, todos esses seus traços pessoais tornam-se ferramentas para este papel. O Sr. Nighy traz um Sr. Williams muito apático e quase robótico que encaixa bem nesses trejeitos físicos quase alienígenas que o ator proporciona. A magia está na transição suave e entusiasmante que Bill Nighy transmite, onde consegue criar profundidade suficiente para que cada sorriso que comece a aparecer no rosto deste protagonista nos impacte sem medo algum. Consegue tocar-nos ver este homem perdido mas composto, fazer um esforço enorme e engasgar-se ao parecer uma criança feliz a falar com os outros, decidir ajudar os que precisam mais do que ele ou até mesmo sentar-se sozinho num sofá a contemplar o que lhe é dado como certo para o resto da sua vida. Bill Nighy consegue exibir tudo isto com o seu olhar e a sua expressão singulares, tornando-se total merecedor da nomeação para Melhor Ator Principal. Nomeação essa que, tal como muitas outras, vem apenas em mau timing pois todos os seus concorrentes são tão bons, senão melhores.
No entanto, esta atuação, em conjunto com uma premissa interessante, se bem que imperfeita, aos olhos da sua inspiração, são razões suficientes para Living ser visto e apreciado por todos os que precisem de uma dose de otimismo na vida, de um filme calmo e sereno, ou de algo para ver depois de limpar a lista dos mais requisitados dos Óscares.