Little Joe (2019)

de Francisca Tinoco

Em Little Joe, da realizadora austríaca Jessica Hausner (Club Zero, 2023, Amour Fou, 2014), o mundo da botânica e da maternidade emaranham e fundem-se para criar um conto inquietante sobre apego, especificamente entre uma mãe e o seu filho.

Emily Beecham (Daphne, 2017, Into the Badlands, 2015-2019) lidera o elenco no papel de Alice Woodard, uma fitóloga brilhante que, juntamente com o seu colega Chris (Ben Whishaw), desenvolve uma flor geneticamente modificada para produzir a hormona ocitocina, também conhecida como a hormona do amor. Alice e Chris vendem a ideia desta planta como uma flor da felicidade (expressão que serve, aliás, como o título português do filme). Ao cheirar o seu pólen, o ser humano sentir-se-á querido, realizado e contente. No entanto, rapidamente percebemos que este filme é muito mais do que um simples thriller de ficção científica sobre os prós e contras da manipulação biológica quando o duo refere, a título de exemplo das funções da ocitocina, a estimulação do vínculo entre mães e bebés. Imediatamente a seguir, conhecemos Joe, o filho de 13 anos de Alice, interpretado por um jovem Kit Connor (Heartstopper, 2022-), descobrindo, pouco depois, também, que a protagonista apelidou a flor de Little Joe, em honra do mesmo.

E há mais. A Little Joe é exigente. Requer muito carinho e atenção por parte do seu cuidador — algo, à partida, pouco apelativo para um mercado moderno composto por pessoas atarefadas, principalmente interessadas nas plantas pelas suas potencialidades decorativas. É por isso que a outra equipa do laboratório, composta por Bella (Kerry Fox) e Karl (David Wilmot), está, por sua vez, empenhada em desenvolver uma flor que obrigue ao mínimo de cuidados possível, para que, como eles explicam, os seus donos possam ir de férias várias semanas sem se preocuparem.

As particularidades de Little Joe assemelham-se, em tudo, à relação maternal e, rapidamente, as linhas entre as posições que a planta e o seu filho ocupam na vida de Alice se tornam cada vez mais ténues. Acontece que o Joe (big Joe? not-so-big Joe…) está a crescer e a desejar mais independência, dando aso a desafios singulares e complicados para uma mãe solteira como Alice que, ainda para mais, vive para o trabalho e pouca vida pessoal tem para além da custódia do filho.

A partir desta premissa, a narrativa evolui por caminhos sinuosos povoados pela ambiguidade e a dúvida, assim como pelo terror e a ansiedade que as mesmas provocam, tanto nas personagens como no espectador. À medida que o drama cresce e se propaga (e esta é uma escolha de palavras bem intencional), fica cada vez mais difícil distinguir entre realidade e paranoia. Little Joe, o seu argumento e a sua realização brilham especialmente na forma como alcançam este balanço periclitante, oferecendo poucas respostas para as questões que levantam, tanto no plano literal e textual como no figurativo e metafórico. Cabe ao espectador tirar as suas próprias conclusões, pondo-no em pé de igualdade com a protagonista, que passa o filme a tentar perceber o que se está a passar à sua volta, oscilando entre ceticismo e crença.

O sentimento de angústia é, ainda, ampliado por uma banda sonora desconcertante, marcada pelos sons estridentes e agressivos e pelo uso das composições surrealistas e animalescas de Teiji Ito – o compositor japonês falecido em 1982, conhecido por musicar os filmes avant-garde da sua mulher, Maya Deren. Também a cenografia e os figurinos evocam o ambiente esterilizado do laboratório e a pigmentação quase alienígena da flor para conferir a Little Joe um ambiente estilizado, muito parecido ao mundo real, mas peculiar o suficiente para poder pertencer a uma dimensão alternativa, contribuindo para a estranheza que permeia todo o filme.

Apesar do ritmo lento e de um sentido de humor “britanicamente” constrangedor (ou constrangedoramente britânico?) que nos mantêm emocionalmente distantes da história e nos impedem de mergulhar nela completamente, Little Joe é um caso de sucesso na plantação e propagação da dúvida, e um bom exemplo do uso da ambiguidade para enriquecer a narrativa e fomentar o terror. Consegue ser, nos seus melhores momentos — que, por norma, coincidem com aqueles em que Beecham dá asas ao seu talento — uma história relativamente comovente sobre a dor associada à separação materna e à individuação das crianças e adolescentes.

No fim de contas, Little Joe é um package deal visualmente apelativo, rico de conceitos pertinentes, aliando o atual ao intemporal, e um competente sci-fi com laivos de Frankestein e Invasion of the Body Snatchers.

3.5/5
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