Catherine Breillat começou a carreira como escritora (livro editado em 1964, com 17 anos), e também como actriz (entra em Last Tango in Paris (1972)) mas é no cinema, há mais de 45 anos, que descobriu o meio ideal para contar as suas histórias. Acusada, até aos dias de hoje, de ser uma autora porno quando não é mais que uma mulher com uma visão tolerante e livre da sexualidade feminina. Quanto maior o taboo da sociedade mais Breillat tenta mostrar, para o assunto, diferentes perspectivas e revelar, através da ironia, o quão hipócrita é o ser humano. Nas margens da indústria desde 1976, altura em que filmou o seu primeiro filme Une Vraie Jeune Fille (1976), distribuído 24 anos após ter sido filmado. Parece inacreditável mas já passaram 10 anos desde o seu ultímo filme Abus de Faiblesse (2013), estreado no Festival Internacional de Cinema de Toronto, o que torna este regresso particularmente ansiado pelo seu público.
L’été dernier acompanha Anne (Léa Drucker), uma advogada empenhada na defesa dos seus clientes. Vive com o marido, Pierre (Olivier Rabourdin), e as suas duas filhas, Serena (Serena Yu) e Angela (Angela Shen). A harmonia e o amor familiar são postos à prova com a chegada de Théo (Samuel Kircher), filho de Pierre de um casamento anterior, com o qual Anne começa uma relação tórrida.
Catherine Breillat está de volta e tudo aparenta estar igual. Somos levados pelo argumento por caminhos inesperados em que a nossa própria culpa e constrangimentos sexuais são postos à prova. As lealdades familiares são testadas, a vergonha e a culpa parecem cobrir a história de uma tensão sexual por vezes avassaladora. Breillat consegue-o com os diálogos, as mentiras que se multiplicam formando uma verdadeira teia de enganos e com uma dualidade na moral de Anne, difícil de engolir por vezes, e de um altruísmo comovente noutro, dependendo a quem se dirige. De igual modo a decisão de nos levar bem perto da relação amorosa com as escolhas de direcção de fotografia de Jeanne Lapoirie sempre perto ou muito perto, através do uso do grande plano ou de planos de pormenor, não deixam um tempo ou espaço de descanso ao espectador. O objectivo é colocar o espectador no lugar de Anne, sem espaço para deixar a razão vencer sobre o desejo, de nos transportar para esse lugar de puro prazer, longe das normas da sociedade e do certo e errado. A par de Claire Dennis, com quem partilha o extremo bom gosto a mostrar corpos em êxtase, Breillat e Lapoirie acrescentam ainda a capacidade para chocar e para nos fazer interrogar, de um modo mais profundo, nos limites e nas constrições morais do amor em sociedade.
Surge na memória imagens de Morte a Venezia (1971) de Luchino Visconti, não pela progressão do argumento mas por Théo, de uma beleza equiparável a Bjorn Andrésen, que era Tadzio o catalisador do herói do filme de Visconti (as semelhanças físicas entre ambos são impressionantes). Théo, interpretado pelo impressionante Samuel Kilcher, representa o elemento de tentação da “heroína”. Há, em ambos os filmes, uma relação perturbadora e errada no seu centro mas Théo está longe do ideal de inocência de Tadzio, corrompido por uma mãe, ausente mas referida inúmeras vezes negativamente. Théo surge como um Anti-Tadzio, subvertendo em vez de inspirar o protagonista. O desejo e a pulsão sexual acabam por “corromper” um paladino da sociedade, na pessoa de Anne. Um jovem arrogante e confiante que vive numa bolha onde só ele existe mas Théo não é apenas isso mas muito mais, revelando a maior força no trabalho de argumento de Catherine Breillat, Pascal Bonitzer e Maren Louise Kaehne, tornando-o patético e obsessivo quando não consegue o que quer. E falar de Anne é falar da magnífica Léa Drucker. É apresentada como alguém inspirador, trabalhador e de uma moralidade inquestionável o que só torna a sua caída em desgraça ainda mais perturbadora. Léa Drucker fá-lo com uma leveza assustadora e em que o seu magnetismo sexual, ampliado pela concretização dos seus desejos mais íntimos, nos torna cúmplices desta relação amorosa. Não conseguimos deixar de olhar para Anne, mesmo quando o que faz não poderia ser mais moralmente comprometedor. E Anne nunca é revelada como uma má pessoa. De um altruísmo inspirador no tratamento dos seus clientes, das suas preocupações bem para além do que seria o seu dever e do extremo carinho e preocupação com as filhas e com o marido Pierre. Olivier Rabourdin, como Pierre, é o elemento do elenco principal com menos tempo para mostrar serviço mas tem duas cenas em que revela a sua dualidade em relação à masculinidade. Mais uma acha na fogueira cortesia de Breillat em grande forma.
Breillat regressa 10 anos depois com uma história que desafia as regras e a moral da sociedade no tema que sempre a inspirou, a sexualidade feminina despida de preconceitos. Léa Drucker é magistral em navegar os caminhos tortuosos de um argumento tremendo enquanto Samuel Kilcher impressiona pela energia sexual, longe dos habituais caminhos da masculinidade, com uma certeza para além dos seus anos. Polémico, provocador e sexy como só Breillat sabe ser – Bem-vinda de volta.
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