O título do filme de terror seminal de Georges Franju de 1960, Les Yeux Sans Visage, traduzido literalmente como “olhos sem cara” na língua portuguesa, é evocatório de uma ideia central na narrativa pelo filme construída. Ser olhos sem cara, é observar, sem poder intervir, é ter um papel essencial sem, no entanto, poder exercer grande poder.
É essa a posição a que a personagem principal, Christiane (Édith Scob), é subjugada após um acidente de viação, causado pelo pai, que a deixa completamente desfigurada. Usa uma máscara que apenas deixa descobertos os seus olhos e perde toda a sua agência ao ser fechada em casa e convencida a suportar os devaneios do pai cirurgião que a usa como cobaia para a sua pesquisa. A máscara e as paredes da mansão imponente nos subúrbios de Paris têm o mesmo propósito – resguardar aquela mulher do mundo, tornando-a observadora, mas, nunca, agente.
Daí que, talvez sem querer, dada a tradição social e cultural da Europa dos anos 60′, Les Yeux Sans Visage seja, em muitos aspetos, um filme feminista. A posição de Christianne é também a posição para a qual a figura da mulher, no cinema e no mundo, foi historicamente relegada.
Esta leitura torna-se ainda mais marcada quando consideramos o papel do pai de Christianne, o Dr. Génessier (Pierre Brasseur), que é, com efeito, o principal agente desta história, ou seja, aquele que a faz desenvolver-se e avançar. Para tal, utiliza as mulheres à sua volta como autênticos fantoches à sua disposição, empregando o seu amor paterno para justificar as suas transgressões. A sua secretária (Alida Valli) encarrega-se de encontrar mulheres nas ruas de Paris para trazer para o seu laboratório, motivada pela dívida que mantém para com o seu patrão depois deste melhorar também a sua cara.
Sabemos que o Dr. Génessier guarda ressentimento e dor pela morte da sua mulher e mãe de Christianne, que acontece antes da narrativa do filme, e um sentimento de culpa pelo seu papel no acidente que causou a condição de reclusa da sua filha. Quando conhecemos este antagonista, já ele se encontra para lá da linha do aceitável no que respeita à sua prática médica, mas as tentativas falhadas de ajudar a sua filha levam-no para um lugar cada vez mais negro e self-indulgent.
De um ponto de vista mais concreto e óbvio, a forma como esta personagem, que apresenta traços do vilão-tipo do género de terror do cientista malvado, brinca com os corpos das mulheres, tal e qual como brinca com os corpos de animais que guarda em jaulas na sua cave, aliada à obsessão que mantém com tudo o que é belo, consiste numa assombrosa representação da violência machista.
Muitas vezes o terror fantástico e o body horror são postos à disposição de tópicos que não podiam ser mais reais, observáveis e palpáveis, encontrando, por isso, formas de os explorar sem pudor ou constrangimento. Les Yeux Sans Visage é um excelente exemplo desta dinâmica, proveniente de uma década que apenas dava os primeiros passos a caminho da emancipação feminina. Sim, a sua protagonista feminina é indubitavelmente passiva, mas não por escolha senão por subjugação. Quando esta finalmente se liberta da sua prisão é precisamente quando o filme deixa claras as suas intenções.
Apesar do terror ser, aqui, amenizado para poder sobreviver à censura da altura, quem for fã do género e pretender conhecer um dos primeiros filmes do seu tipo no cinema de autor Francês – uma tentativa de Franju de elevar o terror que serviu e continua a servir de inspiração a cineastas modernos – terá em Les Yeux Sans Visage um filme rico na arte de criar suspense e desconforto. O realizador, juntamente com o seu diretor de fotografia, o alemão Eugen Schüfftan, e o seu compositor, Maurice Jarre, criam imagens e sequências inesquecíveis que têm tanto de aterrador como de comovente. É de destacar uma sequência, em concreto – que deixaremos por explicitar numa tentativa de manter o choque que a mesma proporciona – pelo uso brilhante dos efeitos práticos e pela realização tão rigorosa como os procedimentos médicos de Dr. Génessier.
Narrativamente, Les Yeux Sans Visage é simples, com algumas reviravoltas e mistérios que sustentam a sua pulsação, e sempre mantendo o artifício a um nível equilibrado e de bom gosto. O seu mérito está, sim, nas suas proezas cinemáticas e temáticas – no tanto que diz com poucas palavras, e na atmosfera que constrói através de longas cenas que fazem perdurar a sensação de receio e estranheza. É um filme de visualização obrigatória para os adeptos do terror e uma boa opção para quem desejar descobrir uma jóia subestimada do cinema Francês.