Plus personne ne croit à la magie. Plus personne ne chante, sauf toi.
Um homem caminha numa estrada deserta vestido com um uniforme militar. O olhar cabisbaixo, o rosto pesado e triste, a passada incerta. O rumo é o único que conhece, mas parece nunca sair de onde partiu, as trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Esta realidade é exacerbada com o recurso a imagens de arquivo recuperadas e colorizadas para uma nova geração que nunca as viu. Surgem como contraponto à fantasia criada por Pietro Marcello na sua simplicidade de uma história de amor. Mas é muito mais que apenas isso.
L’Envol (Velas Escarlates em português) acompanha Raphaël (Raphaël Thiéry) no seu regresso à vida real onde descobre ter uma filha, Juliette (Juliette Jouan), da sua falecida esposa. A partir deste reencontro inesperado, surge um amor maior, capaz de dar um novo sentido de missão a um homem derrotado. Desta família de artistas, à margem da sociedade, cresce Juliette. Esta é a sua viagem na aventura da vida, da arte, do amor e, acima de tudo, dos sonhos.
O escritor russo Alexander Grin, é o autor do romance As Velas Escarlates (1923), passado na Rússia recém-socialista, do qual o filme se baseia. Ao contrário do seu material de origem, a obra de Pietro Marcello escolhe representar França do início do século XX, mas esta diferença torna-se irrelevante pois, como o próprio afirma, esta é uma história universal que poderia ser contada em qualquer lugar ou cultura. Ao escolher o período após a Grande Guerra, escolhe um tempo de grande volatilidade e dificuldade para os mais pobres.
Raphaël regressa a casa, e cedo se percebe que o trabalho não abunda, fruto do descalabro económico pós-guerra, principalmente para um artista. Na sua aldeia não há abertura para o receber e muito menos para aceitar a diferença. Acaba por ser acolhido por Madame Adeline (Noémie Lvovsky), no que aparenta ser uma comuna de artistas. Do lado dos artistas ainda temos Yolande Moreau e Louis Garrel, em pequenos papéis com grande relevância para a história. Ostracizados e em conflito permanente com a aldeia vizinha, a comunidade de artistas acaba por criar um fosso cada vez mais profundo até à rutura inevitável entre ambos.
A própria palete de cores é distinta entre a aldeia, dominada pela monocromia do preto ou cores escuras (aparentando estar em luto eterno) e as cores variadas usadas na comuna, com o destaque óbvio para Juliette, muitas vezes usando vermelho vivo – o escarlate. O sol e a luz parecem seguir a nossa protagonista deixando todos os outros na penumbra, se assim for a sua vontade, mas também de os trazer para a luz e para a magia da vida.
Este contraste é mais visível entre pai e filha: Raphaël é um gigante gentil, com um coração sensível de artista que o mundo tentou destruir. Há, nos seus olhos, essa tristeza entranhada no ser, mas também a centelha, o brilho no olhar, quando cria arte. A subtileza com que o actor a demonstra é cativante e acaba por nos envolver na sua viagem por este mundo. Percebe-se que este envolvimento do espectador com Raphaël é essencial, pois é a presença mais constante do filme. Juliette, por outro lado, partilha com Raphaël esse brilho no olhar, mas é uma alma curiosa e aberta para tudo o que o mundo lhe oferece. Juliette Louan, na sua estreia em longas-metragens, consegue dar essa qualidade à sua personagem mas também a irreverência e carisma, coisas impossíveis de aprender e que auguram um futuro da actriz na arte da representação. Falta, porventura, um maior variedade na demonstração de emoções para prender o espectador por completo. Presenteia-nos, também, com a sua bela voz, cujas canções acabam por se imiscuir na história como se de um musical se tratasse.
A própria música é uma personagem em L’Envol, com o uso e abuso do piano a dar a magia e leveza, fazendo lembrar o ambiente criado com a música de Howl’s Moving Castle (2004). Fechando os olhos, parecemos estar num filme dos estúdios Ghibli. Existem muitas outras referências ligadas ao mundo da arte. Vislumbramos o barroco de Caravaggio na figura de Raphaël sempre escondido na penumbra ou o impressionismo de Monet, com Juliette e Jean (Louis Garrel) deitados na relva a conversar. Vemos Jean Renoir na sua exaltação da água e reverência pelo rio em The River (1951) presente em tantas cenas ou Jacques Demy, como homenagem à sua filmografia, ao trazer o musical para os cenários do dia-a-dia mesmo que por apenas breves instantes. Também a escultura dá um ar da sua graça e confirma a “contaminação” absoluta da arte como motor da narrativa e a melhor parte de entrar neste mundo de L’Envol.
Pietro Marcello cria uma fábula cheia de luz e de magia, só possível através da criação artística. A mistura de géneros clássicos do cinema dá a L’Envol uma qualidade intemporal, e conspira para criar uma homenagem ao romantismo e à simplicidade do amor. As velas escarlates do título prometem mudança e cumprem a promessa quando finalmente surgem, mas não envolvem o espectador no final desejado, que se apresenta demasiado apressado.
2 comentários
O crítico revela conhecimentos de História da Arte-pintura! Evocando o claro- escuro de Caravaggio e não só!
Obrigado António. Espero que tenha gostado da crítica. Um filme interessante sem dúvida