Leave the World Behind (2023)

de Antony Sousa

Chegou finalmente à Netflix um dos filmes mais intrigantes do ano. O trailer de Leave the World Behind fazia antever um enredo misterioso, um universo estranho, personagens perdidas, e um grave problema por solucionar. Isto agregado a um argumentista com provas dadas, Sam Esmail, autor de Mr. Robot (2015-2019), e a um elenco de peso, com nomes como Ethan Hawke, Julia Roberts e Mahershala Ali, deixou muito boa gente com água na boca. Será que cumpriu com o prometido?

Vivemos dias conturbados, muita informação, desinformação, muitos egos, demasiadas necessidades para tão pouco tempo, tanto tempo passado com o que não nos faz felizes, tanto tempo longe de quem já contribuiu para momentos felizes, até já não conhecermos assim tão bem essas pessoas. É um exercício complexo e de certa forma bastante humano tentar decifrar uma pessoa, se é boa, se é má, até ao ponto inevitável de percebermos que tem características boas, e outras más, e ainda outras que para nós não serão positivas, mas com diferentes olhos dos nossos poderão ser assim vistas.

Uma escapadinha em família numa zona pacata torna-se rapidamente num pesadelo crescente, quando todos os dispositivos electrónicos deixam de funcionar e dois estranhos aparecem a meio da noite, criando uma onda de dúvidas e medos que só se vão empilhando com o passar das horas, e com o passar dos acontecimentos gradualmente mais graves e inexplicáveis. Amanda (Julia Roberts) e Clay (Ethan Hawke), são um casal que procura reencontrar o que os fez formar uma família, ou melhor, Amanda mais consciente do piloto automático que comanda as suas vidas, segue nessa busca, arrastando o marido. Os filhos, Rose (Farrah Mackenzie) e Archie (Charlie Evans) de 13 e 16 anos, respectivamente, são dois adolescentes fechados nas suas bolhas de adolescente. Toda a distopia que cavalga pela história a um ritmo controlado e equilibrado, só serve para colocar mais a nu quão frágil é esta família, e o quão urgente é que comuniquem de forma honesta uns com os outros, que se ouçam.

Quando surgem Ruth (Myha’la) e G.H. Scott (Mahershala Ali) a bater à porta dos problemas da família Sandfotd, é-nos permitido perscrutar melhor aspectos da personalidade de Clay e Amanda, que nos afastam um pouco da perspectiva de existir alguém bom ou mau neste filme, o que abona a favor da trama porque adensa a nuvem cada vez mais escura de mistério que paira sobre tudo e todos, espicaçando a nossa vontade de o ver até ao fim. A camada de bizarria no contexto mais generalizado da história, que também é alimentado de forma eficiente, é igualmente inquietante. Nós não sabemos se os acontecimentos envolvem o mundo, só uma zona, se representam uma guerra, se é um acaso ou até se tem mão alienígena. Até bem perto do final tudo isto são possibilidades viáveis.

Ora, até aqui tudo certo. Todos estamos ansiosos por perceber o que se passa, e ao mesmo tempo com um misto de receio e curiosidade em como um possível fim do mundo pode afectar o comportamento já por si errático destas personagens, que têm mais em comum com o cidadão comum do que possamos querer admitir. Até que… a conclusão é tão inconclusiva que se ergue dentro de nós a legítima pergunta do “Então mas… Não acabou pois não? Pois não?!”. O filme é baseado num livro de 2020 com o mesmo título, e é compreensível que se sigam as linhas originais que cosem a história, mas com tanta adaptação a fugir das suas origens, não podiam aqui só alterar um capítulo? A verdade é que nunca estamos satisfeitos com coisa alguma, e também acaba por ser extremamente interessante que esta seja a sensação final num filme que nunca nos deixa confortáveis, e se formos sinceros, nunca prometeu dar-nos as respostas que queríamos ouvir, tal como nós muitas vezes preferimos assobiar para o lado e fingir que está tudo bem em vez de enfrentar os problemas.

O que estava prometido era um elenco de luxo, e esse não desilude vivalma! Ethan Hawke criou um Clay que podia ser tanta gente que se cruza connosco no dia a dia. Julia Roberts está brilhante como Amanda, ficamos sem saber se gostamos dela ou não, se a percebemos ou se preferimos dizer que não a compreendemos, chega a ser impressionante como com tanta coisa estranha a acontecer ela é provavelmente o elemento mais imprevisível. Mahershala Ali podia ter 5 horas seguidas de tempo de antena que iríamos sempre querer vê-lo e ouvi-lo. Não falha uma nota na sua partitura de excelência para o G.H. Scott que sabe mais do que fala. Os jovens actores Myha’la, Charlie e Farrah, estão à altura dos pais que têm, e representam com naturalidade o que as personagens pedem.

Há muito a retirar de Leave the World Behind, acredito que mais do que uma primeira visualização dirá, e bem mais do que o impulso nos exclamará ao ouvido depois dos créditos finais entrarem no nosso campo de visão. São inúmeros os comentários sociais, políticos e humanos que podemos encontrar escondidos nos bosques do humor subtil, na razão para o que desponta o cenário distópico, e a cada hora que passa estou mais certo que também no fim escolhido, por muito que custe admitir. Nunca será consensual, nem mesmo por aqueles que gostarem dele, mas não creio que tenha sido feito com o intuito de o ser, foi concebido para abanar. E abananados ficamos.

3.5/5
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