Le Règne Animal (2023)

de Pedro Ginja

Os sinais são evidentes a cada dia que passa e em cada noticiário a que assistimos. Os desastres naturais são cada vez mais frequentes e o tempo parece cada vez mais extremo. De chuvadas extremas a secas prolongadas que acontecem, muitas vezes, nas estações mais inesperadas. As estações do ano cada vez fazem menos sentido e apesar de tudo isto o homem pouco ou nada faz para alterar a situação. Mesmo vendo a temperatura média anual a aumentar consecutivamente ou o nível das águas do mar a seguir caminho idêntico tudo continua na mesma e as razões são muitas. As desculpas são muitas, mesmo com a natureza a mostrar sinais de desagrado claros. A guerra já começou há muito tempo mas continuamos a ignorar os sinais.

E se a natureza encontrasse uma nova maneira de salvar o ser humano? Le Règne Animal, realizado por Thomas Cailley, cria essa realidade alternativa onde o ser humano começa a sofrer mutações animais. Neste mundo, em pleno período de mudança, vive François (Romain Duris) que tudo faz para salvar a sua mulher dessa terrível condição médica misteriosa. François e Émile (Paul Kircher) procuram um novo local, em comunhão com a natureza, para compreender a dimensão desta nova realidade e encontrar a paz por que tanto anseiam.

Escrito por Thomas Cailley e Pauline Munier, Le Règne Animal explora bem as implicações burocráticas e emocionais do evento em questão. E não tem medo de colocar o dedo na ferida, com a criação de “campos de internamento” que parecem campos de concentração. A ideia é dura mas não estaria longe da realidade humana de esconder o inconveniente ou o inexplicável. Essa implicação directa dos argumentistas é uma crítica velada à resistência humana à diferença, na actualidade ainda bem patente na comunidade LGBTQ, no racismo e na diferença de género. O espelho com a realidade actual e de um passado recente onde procurámos “curar” o que considerávamos uma doença é o maior triunfo do filme. A esse triunfo junta-se o uso inteligente do humor não deixando a narrativa “morrer” na seriedade autoimposta pelo tema pesado de uma doença sem cura, e de uma família em crise. Sem esse caminho teria sido quase impossível suportar o sofrimento imposto a cada uma das personagens, desligando-nos emocionalmente da sua realidade.

Nem tudo na progressão da história é bem pensado, como a evolução de muitas das personagens, falhadas ou sem progressão aparente. Apenas Paul Kircher, que interpreta Émile e, em menor grau, François, interpretado por Romain Duris, conseguem criar uma personagem para além da sua função na história. A mãe (Florence Deretz), parte fundamental da narrativa inicial, acaba como mera figurante quando a conclusão da história chega. Pior sorte tem Adèle Exarchopoulos, um talento nato na representação, criminalmente subaproveitada como Julia, agente da polícia francesa. Romain Duris tem uma interpretação emotiva e está claramente investido na narrativa mas é um papel secundário face a Paul Kircher, num duplo papel transformativo tanto a nível de ADN como a nível de hormonas, em plena crise adolescente. A justaposição entre essas duas realidades é o ponto de maior interesse na evolução da personagem de Émile e é uma delícia, para o espectador, vê-lo “navegar” esses dois mundos de complexidade emocional tão elevada. Promete, por isso, um futuro brilhante como actor. No entanto num filme claramente a defender a diferença como parte da natureza humana é redundante ver as personagens femininas tão mal aproveitadas e a retirar complexidade a uma realidade que teria sido interessante explorar ainda mais.

Outros dos pontos impressionantes desta produção é a quase total ausência de efeitos em CGI. Para um filme que contem tantos seres humanos mutados para os mais diversos animais (a considerável variedade de mutantes é deveras surpreendente e bem executada) o uso maioritário de efeitos práticos, tanto de câmara como de maquilhagem, o design inspirado das criaturas e o trabalho de som bem delineado e executado torna tudo muito mais real e por isso mais fácil de acreditar. O clima de terror baseado no body horror é bem conseguido e deixa o espectador com os nervos em franja e leva, os mais impressionáveis, a desviar o olhar em algumas das sequências. Menos impressionante é a identidade visual e o trabalho de fotografia sem nada de marcante ou estimulante cumprindo a contar a história mas pouco mais para além disso.

Le Règne Animal deixa várias interrogações e questões no ar sobre a culpa humana no desregular da natureza e algumas lições necessárias na evolução da sociedade humana sem nunca cair na armadilha de atribuir culpados ou soluções milagrosas de pacotilha. Consegue-o com a ligação emocional criada entre pai e filho, unidos pela mesma tragédia, num mundo sem paciência para a diferença. Essa falta de paciência acaba por se reflectir na incapacidade de unir todas as peças deste complexo puzzle de questões, ideias e soluções e de perder fios narrativos importantes pelo caminho. Apesar de tudo a sua originalidade no panorama cinematográfico actual é razão suficiente para o ver no cinema.

3/5
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