Laranjas Sangrentas (2021)

de João Iria

Uma comédia sem negociações.

“O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros.”

Através desta citação do filósofo Marxista, Antonio Gramsci, forma-se um ambiente retorcido, com a capacidade de cortar a respiração e substituir essa por risos maníacos sem ar, a escapar por entre dentes a ranger. Essa atmosfera permanece desde este ponto até os créditos finais desta história, exibidos ao som de uma escolha irónica na banda sonora. Profundamente desconfortável, Oranges Sanguines (título original) é uma comédia negra de terror que procura desafiar a sua audiência a rir perante as monstruosidades de um mundo desfeito por pessoas presas no passado.

Inspirado por eventos reais explora, em estilo vignette, diferentes personagens em simultâneo, cujos caminhos se cruzam nas piores circunstâncias. Entre as diversas histórias: um casal de reformados, assoberbados em dívidas, tenta ganhar um concurso de dança; um fraudulento ministro da Economia é suspeito de evasão fiscal; uma adolescente depara-se com um maníaco sexual; e um jovem advogado tenta subir na hierarquia social. Esta terceira obra realizada pelo ator/encenador Jean-Christophe Meurisse, tem estabelecido uma reputação crescente em Festivais, desde a sua integração na seleção oficial de Cannes em 2021 até ao seu destaque em Portugal, como o vencedor do Prémio do Público do MOTEL X 2021.

Esta criação satiriza descaradamente vários sectores da sociedade francesa contemporânea, misturando comédia com o terror da realidade, tecendo uma teia de caos aleatório inicial que entra em combustão no decorrer do enredo, substituindo risos por aflição aterrorizante. Meurisse, que co-escreveu o argumento com Amélie Philippe e Yohann Gloaguen, defende a sua obra como “uma visão crítica da sociedade francesa, mas a melhor homenagem que um artista pode prestar ao seu país é criticá-lo”. Esta frase faz-se sentir em todos os momentos desta longa-metragem.

Em Laranjas Sangrentas, a construção de uma vida inteira é insignificante em comparação com o valor financeiro de cada um; idosos perdem tudo aquilo pelo qual trabalharam e os adultos, conscientes que habitam num mundo sem interesse na sua existência, nem sequer essa hipótese atingem. As palavras das personagens são expostas com cinismo e com um sentido de revolta em existir numa sociedade que falha continuamente à sua população, num mundo demasiado concentrado em inconsequências e na ilusão da preocupação, para prosseguir com um futuro otimista e esperançoso. Um novo espaço é impedido de nascer pois os monstros antigos emergem defensivos para recuperar o que perderam; o fascínio de Meurisse está precisamente nesses monstros e o seu interesse está em inquietar os espectadores ao manter estas criaturas sempre à beira do ecrã – inicialmente representadas como palavras e depois personificadas.

A sua estrutura, de estilo episódico, implica uma desconexão no primeiro ato (recompensada na conclusão), com alguns elementos que funcionam e outros nem tanto. Enquanto as ridículas discussões explosivas, como o júri do concurso de dança em divagações sobre a legitimidade de uma deficiência física ou uma conversa acerca dos falhanços do feminismo, guiada por homens inseguros, salientam a absurdidade deste filme, outras cenas revelam-se duvidosas provocando mais confusão do que gargalhadas, ou até indignação.

O próprio marketing de Laranjas Sangrentas atrai a atenção para as suas intenções destemidas de parodiar temáticas comuns da atualidade, tanto políticas como sociais, sendo um dos principais alvos a cultura do politicamente correto. O argumento evita comparações com os gritos asfixiantes de comediantes sem imaginação, ao ridicularizar ambos os lados deste tema com diálogos perversamente hilariantes, ainda que certos momentos acabem por cair nas armadilhas habituais destas críticas com piadas que até o próprio Lars Von Trier rejeitaria.

O nível de introspecção, alterna entre comentários perspicazes que capturam uma sociedade em declínio e delírios incoerentes equivalentes a uma seleção de tweets, a gritar para o vazio, sobre o estado do mundo. O cinismo acaba por controlar a progressão de uma história, claramente sem esperança, divergindo esta para um ambiente divisivo. Devido à alma provocatória desta longa-metragem, inevitavelmente assume-se que o seu coração bombeia sangue somente para repudiar a sua audiência, todavia, o seu coração reside no casal de idosos, prestes a perderem uma vida inteira de trabalho nas suas dívidas, e mantém-se vivo neste pedaço emocional narrativo que solicita alguns dos momentos mais poderosos (dramáticos e cómicos).

Transportar o público a cair nos erros destas personagens é, possivelmente, a intenção desta sátira provocadora, sem barreiras ou receio de ofender. Meurisse recusa-se a seguir regras, alimentando-se de energia caótica como um marionetista maléfico, com uma marioneta na mão e uma tesoura na outra. Os risos desconfortáveis providenciam a consciência de uma entidade perigosa neste enredo que liga os espectadores ao seu assento, restando-lhes somente esperar pela aparição dos monstros e as suas trágicas e temíveis consequências. É impossível ficar indiferente a Laranjas Sangrentas, uma comédia ácida que captura a sua audiência por completo, mesmo que seja como refém.

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