Há filmes que nos deixam um gostinho na boca, por vezes doce, outras vezes amargo, e os mais interessantes um uma mistura de vários sabores que mexem connosco para lá do básico veredito final do “gosto” ou “não gosto”. La Passion de Dodin Bouffant sabe a um menu confeccionado para escrever poesia dentro de nós, para ser acompanhado por um vinho refinado e elegante. E para ser visto quando tivermos saciado a fome, isto para não corrermos o risco de ficar a salivar durante duas horas.
Esta é a história de Eugenie (Juliette Binoche), uma cozinheira humilde e respeitada, que mantém uma relação de intimidade com Dodin (Benoît Magimel), chef com enorme prestígio em França. Com os alimentos como cenário, Dodin procura também alimentar a paixão que nutre por Eugenie, tentando convencê-la a casar-se consigo. Os hábitos diários de partilha na cozinha são actos de amor que simplificam a essência complexa nas relações entre pessoas com hierarquias diferentes no trabalho.
“A felicidade é continuar a desejar o que já temos“, é uma frase citada por Dodin a Eugenie, perguntando e perguntando-se se alguma vez a “teve”. Porventura a resposta será menos complicada do que a questão. A cumplicidade nos pratos que cozinham um para o outro com tanta minúcia e responsabilidade, revela tudo o que precisam de saber sobre quem são. Duas pessoas que dedicam a sua vida a proporcionar prazer ao próximo, que temperam as palavras e as saboreiam de modo que cada garfada que cada dia representa seja uma experiência, ainda que rotineira, sempre agradável e satisfatória. A comida é uma personagem central na história, contudo, o toque especial com marca do chefe é dado pelo comovente romance de anos entre os cozinheiros.
Não é humanamente possível falar de La Passion de Dodin Bouffant sem mencionar Juliette Binoche e Benoît Magimel! A química entre ambos é tocante, apaixonante e dispensa artifícios para a potenciar. O tom do filme acaba por não ter muitos altos e baixos, porém está repleto de preciosidades só ao alcance de actores em total controlo do seu instrumento. Nada é forçado, aliás, tanto nas interpretações (que incluem o resto do elenco, em particular a pequena Bonnie Chagneau-Ravoire com a sua personagem Pauline) como na edição, que sem pressas vai exactamente onde quer chegar e passa exactamente por onde quer passar.
Existem várias cenas de filmes e séries que habitam no nosso imaginário pela sensação de conforto que nos abraça quando pensamos nelas, sendo que cenas com comida têm um lugar muito particular, diria que uma vivenda com um vasto jardim na nossa mente. Chef (2014) ou Ratatouille (2007), exemplificam o poder que a imagem pode ter nos nossos sentidos. Esta lista tem um novo nome que acrescenta diversos momentos neste registo. The Taste of Things não é na verdade uma tradução do título original, mas uma tradução do que vemos da história, e é também o nome a colocar com letras de ouro no conjunto de filmes que nos fazem relembrar que cozinhar pode muito bem ser uma arte!
A ementa para uma história que nos marque terá sempre como ingrediente obrigatório o factor humano. Dificilmente me recordo, nos tempos mais recentes, de um produto artístico tão puramente humano como este realizado por Anh Hung Tran. Claro que numa realidade actual que se desloca à velocidade da luz, provavelmente muito público não terá paciência para o ritmo necessário para se apresentar uma história de amor sem intrigas nem traições. Ainda assim, vale a pena apostar no público que vai acordar com o espírito certo para esperar e provar uma refeição cinematográfica de duas horas e quinze minutos que nos preenche desde as entradas até à sobremesa.
A beleza de facto reside nas coisas simples da vida, simplicidade essa que é utópica para muitos cineastas. Não para Anh Hung Tran, chefe da equipa por detrás desta obra de arte. Não quer dizer que a vida seja fácil ou justa, mas quando estamos preparados e dispostos a procurar beleza e propósito, estes dois elementos entrelaçam-se e formam a paz que precisamos, mas que teimamos em tentar encontrar nos sítios errados.