“Há que tratar os objectos como se fossem nossos entes queridos. É preciso dar-lhes amor.”
María (Estefanía de los Santos) está sozinha numa sala revestida de negrume, coberta de suor e a libertar uma intensa dor sentida nos seus gritos. Nenhum médico ou pai à vista enquanto esta mulher grávida finalmente solta um suspiro de alívio e o seu sofrimento é substituído pelo choro do seu recém-nascido e o seu amor expressado num típico abraço de mãe. Repentinamente, em meros segundos, encontramos María com o seu namorado, Jesús (David Pareja), e o seu bebé numa loja, prestes a comprar uma mesa de café. É a primeira decisão de Jesús nesta relação, como refere inúmeras vezes à sua cara-metade. A sua escolha é comprar uma mesa de vidro inquebrável, suportada pelas pequenas estátuas de duas mulheres modeladas em marfim e banhadas numa perfeita imitação de ouro. É garantido um look elegante para a sua nova casa. É garantida, também, uma felicidade inédita para o casal nesta sua nova vida. Tudo numa mesa de café. “É uma merda”, comenta María após este monólogo. “Não há nada inquebrável neste mundo.” O vendedor simplesmente responde: “Um vaso pode ser quebrado. Um móvel pode ser quebrado. Um casamento pode ser quebrado.” – a sua última tentativa de venda, reforçando a mesa como absolutamente indestrutível. No seu reflexo testemunhamos o casal num silêncio conflituoso.
Assim é estabelecido o ambiente, as temáticas e a história desta cruel comédia negra de terror, La Mesita del Comedor (em portugal A Mesa de Café), realizada por Caye Casas. A futilidade desta discussão, suscitada através de uma simples compra; de uma mera mesa de café que reflecte a raiva, a dor e o desconforto desta relação, é o espelho de uma cólera omnipresente com bagagem suficiente para preencher um avião inteiro. Essa mesa transforma a vida deste casal num acidente de aviação, estilo 11 de Setembro para casais, no espaço de um único dia. As consequências desta compra insistentemente recordadas pela sua presença na sala de estar. É admitidamente feia, confirmada até pelo próprio vendedor, um homem desesperado por companhia. O aspecto visual desta mesita converte uma situação angustiante e horrorosa numa piada cruel; a única decisão deste homem personificada como um stalker metafórico denominado de responsabilidade e de culpa, perseguindo o protagonista até os créditos finais. María menciona ser karma. O argumento de Casas e Cristina Borobia certamente designa uma estranha forma de karma demoníaco e maquiavélico, como criado pelo próprio Belzebu, estendido às gargalhadas com as suas pernas esticadas na sua própria mesita del comedor.
A Mesa de Café adopta a estrutura de uma comédia do anos ’90 sobre um homem a tentar esconder um segredo da sua namorada, excepto que a sua narrativa tenebrosa e malévola parece produzida como um acto de vingança punitiva colossal. As melhores (e mais malignas) gargalhadas irrompem pelo terceiro acto, durante um jantar profundamente constrangedor entre o casal principal e o irmão de Jesús, Carlos (Josep Maria Riera) e a sua recente namorada, Cristina (Claudia Riera), que introduz notícias, revelações e um humor consistentemente macabro. Os diálogos são capazes de provocar uma audiência a atirar a sua televisão por um penhasco ou a abandonar os seus assentos, enojados perante a temática retratada, enquanto os restantes espectadores, sentados em berrantes risos, são julgados com ódio pelo público, à porta da saída. Eu, aparentemente, pertenço aos condenados.
Esforço-me para manter a premissa principal desta história escondida, ironicamente como o seu protagonista, pois acredito que é necessário conservar esse elemento de surpresa durante o percurso da longa-metragem. Quando o momento dramático que despoleta a narrativa sucede, sabemos imediatamente se queremos acompanhar esta personagem no seu silêncio ou se a nossa escolha está em abandonar Jesús na sua jornada. Ambas as decisões compreensíveis para um público enervado, ansioso e confuso acerca do futuro desta família. A edição, pelo próprio cineasta, fomenta esta raiva, sendo movida pela monstruosidade circunstancial nos contrastes entre cenas pacíficas de felicidade casual com os momentos afogados em tristeza e pânico, delineados com um sorriso malicioso e manipulativo.
O absurdo da sua discrepância atmosférica e dos subenredos intrometidos e inconvenientes para a narrativa principal, coloca esta premissa numa posição ridícula. A piada está na crueldade insensata deste cenário, na forma como o filme ridiculariza as suas personagens nas suas decisões e nas suas pausas; uma piada partilhada entre o criador e a audiência. Nós, essencialmente, aderimos à graça do mórbido. Aliás, Casas ridiculariza o próprio enredo com conversas sobre a vida e a infância, naturalmente inoportunas para os eventos sucedidos. La Mesita del Comedor representa a união do seu casal como um vidro frágil, quebrado pedaço a pedaço até restar somente pó na sua conclusão. É nefasto, doentio e divertido. Todavia, o humor nunca danifica o seu perturbador instante final, permanecendo intensamente emocional perante o desgosto destas personagens. E apesar das gargalhadas ecoarem numa vazia sala de frustração, ansiedade e lágrimas, é necessário reconhecer estas como inevitáveis. Particularmente, quando olhamos para aquela sala de estar. É como um fado sombrio. Tudo por causa de uma mesa de café.