Chimera: palavra italiana, sem particular tradução para a língua portuguesa, que grosseiramente podemos traduzir como um instinto para perseguir uma utopia. A procura de um sonho fora do alcance térreo. Dizem de Arthur (Josh O’Connor) que este segue as suas chimeras para localizar os túmulos Etruscos que ele e os seus tombaroli (ladrões de campas) saqueiam, em busca dos tesouros que acompanham os corpos lá enterrados. À noite, sonha com Beniama, a sua amada que apenas vemos em vislumbres, repletos de luz refletida da sua pele branca, da qual a câmara está tão próxima que a intimidade do momento é quase asfixiante e a saudade de Arthur, é agora a nossa também. Sabemos por Flora (Isabella Rossellini), a sua mãe, que Beniama está desaparecida, mas é esperada todos os dias em casa, como se estivesse meramente atrasada para o almoço habitual de Domingo. Pouco mais sabemos de Arthur, e ainda menos de Beniama. O primeiro é melancólico e o seu semblante apenas abandona este estado quando na presença de Italia (Carol Duarte), uma aluna de canto e cuidadora de Flora que parece como vinda de outro mundo.
A verdade é que La Chimera é um filme de muitos mundos, sobrepostos, translúcidos, fluídos e indistinguíveis. Arthur, com o seu fato bege, cheio de pó, lama e suor podia ter saído do set de Raiders of the Lost Ark (1981) como um britânico perdido em Marrocos e ninguém pestanejaria com ar duvidoso; também a vila onde estes e os restantes tombaroli vivem é de tal forma pitoresca que, apesar dos carros que a habitam e as industrias que a cercam, parece um santuário onde o tempo congelou décadas antes da de 80’ onde se passa a ação; a câmara de Hêlène Louvart, carregada de grão e luz gravita à volta de Arthur, rodeando-o e girando-o até a distinção entre este mundo e o outro, entre este e o dos mortos, não ser mais que uma linha tão ténue que Arthur consegue passar-se entre os dois sem sequer se aperceber.
É talvez por isso que este último trabalho de Alice Rohrwacher seja tão difícil de descrever. As maquinações narrativas são claras e elementares, mas os acontecimentos que vão populando La Chimera, apesar de vaguearem confiantemente entre o mágico, o melancólico e o jocoso, parecem acontecer num Universo sonhado, onde a realidade é apenas um de muitos outros elementos a coexistir.
Esta leveza sonhadora de La Chimera é sustentada na face de O’Connor (que filmou este e Challengers [2024] praticamente em simultâneo) que, como Orfeu, procura a sua Euridice nos túmulos que assalta, como se escavasse o submundo à procura de algo que inexplicavelmente perdeu. Os prazeres mundanos são fúteis e vulgares e sem Beniama, Arthur vive uma existência incompleta, que vai reencontrando pelo caminho, em momentos fugazes que no fim se mostram incomparáveis àquilo que um dia teve. O filme de Rohrwacher não é isento de humor ou o calor do afeto, porém é como se aqueles mundos sobrepostos de La Chimera girassem e girassem com Arthur suspenso, imóvel e imune à passagem do tempo, preso num momento, com Beniama e o resto – a arte que rouba e vende, a companhia de Italia ou a beleza do que o rodeia – sendo uma mera circunstância do mundo dos vivos que pouco interesse lhe oferece.
A realizadora italiana traz a natureza dinâmica e extravagante de Fellini e o romantismo e solidão de Paris, Texas (1984), (curiosamente, Hélène Louvart já trabalhou com Wim Wenders, e há aqui uma clara referência visual à caminhada de Travis pelo deserto) com uma pitada da magia que podia vir de Spike Jonze ou Charlie Kauffman. O extraordinário é que apesar de nos fazer aqui e ali lembrar de outras coisas, de outros momentos em outros filmes ou outros livros, La Chimera sente-se sempre uma experiência única e que não podia nunca ter sido concebida por outra mente que não a de Alice Rohrwacher, que com a ajuda preciosa de atuação brilhante de O’Connor, dá vida a um filme tão íntimo que podia ser um dos tesouros desenterrados por Arthur, uma ligação deste mundo àquele que vem depois.