A inteligência artificial é o tópico do momento e veio para ficar, mas o fascínio não vem de agora. Poderíamos iniciar esta viagem por 2001: A Space Odyssey (1968), a obra-prima de Stanley Kubrick, em que o vilão é um supercomputador, claramente capaz de pensar por si próprio. Bem mais negra será a visão de James Cameron em Terminator (1984) e Terminator 2: Judgement Day (1991) em que nos é mostrado um planeta Terra dominado por máquinas e em que a Humanidade é perseguida até à extinção. Com os avanços no mundo actual da IA, os exemplos mais subtis do impacto também existem como em Ex Machina (2014), com a avaliação psicológica das qualidades humanas presentes em Ava (Alicia Vikander) um protótipo de android revolucionário; ou em Her (2013) em que a IA é Samantha (Scarlett Johansson) uma entidade imaterial, representada por uma voz, e que retrata uma relação inesperada entre ela e Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor solitário.
Parece inevitável esse desejo humano de tentar compreender, no passado distante ou recente, algo que ainda não existia, mas quando no presente a IA é já uma realidade, os pontos de vista e as possibilidades do tema parecem inesgotáveis. La Bête de Bertrand Bonello pretende explorar esse manancial com a história de Gabrielle (Léa Seydoux), em pleno tratamento de supressão das suas emoções, num estado em que a IA controla todos os seres humanos. O tratamento consiste numa viagem, através do tempo e do espaço, para as suas vidas passadas e para um homem em particular, Louis (George MacKay), para quem parece gravitar irresistivelmente. Será a cura possível ou será este amor uma “doença” impossível de curar?
Fortes palavras chamar o amor de doença, mas parece condizente com o sentimento cultivado pelo filme. Além de realizador, Bertrand Bonello é também responsável pelo argumento, em conjunto com Guillaume Bréaud e Benjamin Charbit, e oferece-nos uma viagem complexa, às vezes mais do que deveria, mas a sensação de estarmos a assistir a algo revolucionário e corajoso é indiscutível. O papel principal desta história de amor está a cargo de Léa Seydoux e a sua interpretação não é menos do que impactante mesmo que por vezes não percebamos bem as suas decisões. Do outro lado desta relação temos George Mackay, num papel que transcende o papel de um homem numa relação e parece encarnar todos os seus espectros, sejam eles positivos ou negativos. Apesar de Gabrielle parecer o elemento estável e seguro, a performance de Léa Seydoux está longe de o ser. Consegue manter o equilíbrio mesmo quando o exagero emocional parece ser a palavra de ordem, de um argumento que procura limpar traumas de um passado que transcende o ciclo da vida humana, e a sua capacidade camaleónica de encarnar mulheres tão distintas num abrir e fechar de olhos não é menos do que impressionante.
Estas constantes viagens entre vários passados e o presente criam um sentimento de dejá-vu constante, não alienado do que cada espectador entende por amor e as razões que nos levam a amar X e não Y. A sua complexidade extrema acaba por inevitavelmente criar desequilíbrios no modo lento como expõe as peças do seu puzzle e que, por vezes, quase perdem o espectador. Posso até criar uma analogia com uma relação amorosa, do qual temos os momentos maiores de êxtase e de comunhão plena com o que vemos no ecrã alternando com a incredulidade de momentos que nos parecem vazios de sentido e em que a exasperação é difícil de conter. É por isso uma história que não se compadece com os ritmos do espectador e o desafia constantemente a estar alerta sob pena de perder o fio à meada no labirinto que se gloria de criar.
É notável a maneira como balança diversos géneros cinematográficos como o drama, dominante é certo, mas ao qual se junta um terror calibrado, não para assustar ou chocar no momento, mas para viver nos nossos futuros pesadelos. É certo que por vezes usa armas, gritos lancinantes e mesmo clichês do terror, como muleta para induzir o susto, mas o verdadeiro horror recai na maneira como evoca, por projecção, os nossos maiores medos e a nossa pequenez, perante a inevitabilidade do destino, nas personagens de Gabrielle e Louis. A comédia surge também, por vezes involuntariamente, nos momentos mais inesperados e serve como mecanismo de descompressão e alívio da tensão induzida continuamente pela narrativa.
La Bête de Bertrand Bonello não é para todos os gostos e vai dividir opiniões como nenhum outro nos últimos tempos, mas consegue, com este drama distópico sobre a perda de humanidade nos tempos modernos, deixar o espectador preso no tempo e espaço criado por ele, bem depois de o filme terminar. David Lynch ficaria orgulhoso do seu novo discípulo.
Ps: Parece-me ser serviço público avisar da presença de bonecas de porcelana durante este filme