Koyaanisqatsi: um filme reflexivo, sem fio narrativo, livre de imposições demagógicas ao espectador, e que faz uso exclusivo do som e da imagem – negando a palavra -, para reforçar a universalidade da sua mensagem. É um poema visual e sonoro que nos questiona sobre se o que julgamos nos definir, é o que realmente nos define. Montes e planícies; vistas contemplativas e sumptuosas do mundo natural, tudo é reduzido a uma simples matéria-prima pronta a ser consumida, digerida, e reorganizada por nós.
Vagamente referencial na sua abordagem, havendo inspirações no trabalho de Godfrey que se fazem sentir: 2001: a Space Odyssey de Stanley Kubrick – pela beleza encontrada no não-belo -; Modern Times de Charlie Chaplin – pela temática relacionada com o ritmo de vida desenfreado da modernidade -, ou até mesmo Powers of Ten de Ray e Charles Eames – pelo conceito omnipresente de escala.
É forçado um confronto com pontos que normalmente fogem ao nosso entendimento. Com o recurso ao time-lapse, o realizador cria um tempo abstracto, reestruturado para nos ajudar a melhor compreender as implicações reais das nossas acções que, pela sua extensão, exigiriam demasiado tempo para realmente serem compreendidas. Há uma mensagem clara: o nosso ritmo de vida encontra-se de tal forma desligado do presente que, ironicamente, só ao o acelerar é que conseguimos quantificar – visualmente – o verdadeiro peso e implicações das nossas acções.
Estruturalmente dobra-se em espelho; joga com multiplicidades, paralelos, e contrastes, que se materializam visualmente em justaposições de planos de temáticas e escalas diametralmente opostas, mas complementares. Todo o filme é um jogo constante de dualidades que procuram expor o quão confortáveis estamos ao coabitar com o nosso próprio desequilíbrio: coexistimos com o nosso caos e maravilhamo-nos nele. O forte ritmo e contraste nas sequências de planos apresentados acentua a subversão e perversidade: são planos sedutores. Há grande beleza e harmonia nos enquadramentos. Não desvirtuam a ação humana, mas glorificam-na por temor, lendo-se um “quase fascínio” de Godfrey com o triunfo do Homem e das suas ações que se materializam na caracterização da espécie: maravilha e medo, na força da sua vontade.
O mundo construído é usado como a metáfora para expor o ritmo da vida. Há uma análise profunda daquilo que confina, estrutura, e sistematiza a nossa existência. Somos explorados de forma gráfica e abstracizada, em planos com recurso a aerial views alternadas com time-lapses, onde vemos padrões de ordenamento em tudo o que fazemos: conjuntos de reservatórios, grelhas de auto-estrada, campos floridos cultivados… A constante que se expõe é a nossa tentativa de imposição de ordem e normalização sobre o mundo natural.
Este pastiche visual escala de ritmo juntamente com a música: flautas, clarinete, trombones, viola, tuba, teclas, e vocais que de tempos a tempos repetem a palavra “KOYAANISQATSI”, num tom sóbrio e cerimonial, e que evoca uma atmosfera apocalíptica. Dotadas do minimalismo compositivo que o caracteriza na época do filme, bem como as estruturas e motivos repetitivos e quase hipnóticos que complementam a imagem. A música é o elemento aglutinador desta peça de arte cinematográfica experimental. O ritmo das imagens apresentadas, que seria de outra forma desconcertante, é atenuado: a cadência e os enquadramentos escolhidos fundem-se com os compassos das composições de Phillip Glass, que normalizam o ritmo da imagem em movimento e acentuam os constantes paralelos entre movimento, velocidade e música.
Os momentos de silêncio são de precisão matemática. Aparecem no seguimento de sequências asfixiantes pela intensidade do frenesim musical e humano que nos é apresentado e reforça a ideia constante da necessidade de tempo para respirar. O que poderia ser um cliché, não o é, porque não nos procura tocar uma nota emocional, mas sim para reforçar a carga da imagem e do pluralismo de significados nela presentes. É uma orgia paranormalmente coesa, orgânica, e poderosa, entre o que se vê e o que se ouve.
Para não roubar o valor poético do que se viu e que se espera fazer pensar, não procura ser obvio. Mexe connosco e só depois dá sentido ao que até então se viu: a explicação da etimologia da palavra “KOYAANISQATSI”, bem como a estrutura tríptica do filme, ditados pelas profecias Hopi cantadas, só se apresentam no final -. Faz-nos olhar para dentro de nós, ao mesmo tempo que para fora – pelo reflexo da força das nossas ações -. Pede que paremos para reflectir sobre de onde viemos, onde estamos, e para onde iremos. Será realmente o ritmo da nossa existência e do progresso tecnológico que dita o quão civilizados somos?
A descoberta do belo no caos é o que torna Koyaanisqatsi num filme tão sedutor. Exalta uma serenidade alheia presente no mundo frenético que habitamos com recurso a uma forte poesis visual. Um elogio, e uma condenação, a uma vida em perpétuo movimento, e que é visualmente aliciante.
Somos deixados, no entanto, com a vaga impressão de que enquanto espécie, o realizador nos personifica enquanto Ícaro – implícito na sequência final… -: voa demasiado perto do sol, e eventualmente, cairás… E é realmente uma Life out of Balance porque, na verdade, nunca paramos – nem para encontrar o nosso próprio ponto de equilíbrio -.
*Artigo escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.