Filmado num iPhone e meio improvisado na Transilvânia durante as filmagens do seu próximo filme, Dracula Park, Radu Jude apresenta um trabalho que, quando colocado junto aos seus últimos, quase podia ser apelidado de convencional (tanto quanto é possível para alguém que realizou Bad Luck Banging or Loony Porn, 2021).
Com uma boa mão cheia de inspiração pelo Europa ’51 (1952) de Rosselini (da narrativa ao poster), Orsolya (Eszter Tompa) é uma agente do estado romeno encarregue de despejar pessoas que ocupam ilegalmente edifícios em Cluj. Durante um destes despejos, a pessoa em situação de sem-abrigo (Gabriel Spahiu) que acompanhamos no início do filme, a pedir nas ruas e a recolher lixo, suicidasse durante o despejo.
As duas horas seguintes são passadas como que entre sketches, uns mais bem-sucedidos do que outros, de Orsolya e uma outra pessoa – a amiga, o padre, a mãe, o marido, o antigo aluno – habitualmente sentados numa qualquer sala, bar ou parque. Nestes, Orsolya culpa-se pela morte do homem, chora e autoflagela-se, tendo o cuidado de fazer sempre uns “parênteses” e garantir que a sua culpa é apenas moral, pois legalmente nada lhe pode ser apontado, como lhe é assegurado pelo inspetor que inicialmente a conforta, dizendo que ela fez tudo perfeitamente conforme o procedimento.
Kontinental ’25 é uma peça minimalista que se sustenta na escrita e humor aguçado de Radu Jude. Move-se entre peças de diálogo perfeitamente ensaiadas e secamente hilariantes, que expõe o ridículo que é a impotência humana perante a selvajaria capitalista. Entre frases e lamentos sobre o que Orsolya podia ter feito de forma diferente, Jude vai inserindo uma e outra vez sequências de edifícios, uns de luxo, outros em construção, e que duram minutos e minutos e minutos. Num filme que abre com alguém a quem a vida correu mal, a pedir dinheiro ou trabalho nas ruas, e sem lugar para viver, as incessantes imagens que o realizador romeno vai injetando em Kontinental ’25 (o nome do futuro hotel-boutique que será construído) são como uma piada de mau gosto com um efeito cruelmente perspicaz. Humor amplificado pelas bandeiras da Roménia e na União Europeia presentes em quase todas as cenas: o sonho europeu esquecido atrás dos quartos de hotéis para turistas.
Não que as irritações de Jude sejam apenas institucionais. Orsolya é apresentada como “de mãos atadas” perante a morte do homem, porém, quando discute com a amiga o que mais pode fazer, queixa-se que se esquece de ajudar certas causas e associações porque não fazem angariações de fundos através de débitos diretos na sua conta da Vodafone. Todos estamos cheios de humanismo até que o mesmo não possa vir na fatura das telecomunicações. Precisamos de conforto e conveniência para ajudar o povo ucraniano ou Gaza, senão é demasiado para nós. Esta mulher que faz o melhor que pode não é tratada como culpada, porém Jude não parece desgostar da ideia de nos dar a entender que ela, e todos nós, somos igualmente complacentes com a miséria, tal como os conglomerados multinacionais a quem acusamos (e bem) de crueldade, apatia e aveza.
Orsolya procura perdão e salvação em todas as pessoas que encontra e que a obrigam em detalhe, uma e outra vez, a explicar como é que alguém pode suicidar-se enforcando-se num radiador. Nem eles, e ao que parece nem Deus, parecem particularmente interessados em dar-lhe esse descanso. Estão todos demasiado ocupados com o seu umbigo para querer saber das dúvidas existenciais de Orsolya. Kontinental ’25 é hilariante, mas dá-nos a sensação constante que isto é tudo, menos engraçado.