Kinds of Kindness (2024)

de João Iria

Kinds of Kindness é uma película doentia. Yorgos Lanthimos partilha no seu cinema uma espécie de enfermidade escrupulosa com ambientes febris nas suas imagens glaciais e uma natureza dramática desumana que suplica desesperadamente por matar a doença na cama. Todavia, essa mesma cama é uma ilusão, um abismo disfarçado de conforto onde os corpos afogam naturalmente; é um sufoque que parece manifestar-se como um desejo pessoal, uma necessidade, um cobertor de negrume interestelar punitivo que abraça a nossa gélida pele enquanto flutuamos neste oceano de seda vazio sem fim. É uma doença maníaca cinemática contagiante que mata uns e revigora outros. A vacina é o vírus. Noutras palavras, é o seu regresso às suas origens narrativas. Noutras palavras, é Grego.

Abandonem o entusiasmo esperançoso de Poor Things (2023) pois Histórias de Bondade (título nacional) é uma fábula tríptica: uma antologia composta por 3 curtas-metragens conectadas tematicamente pelo conceito de amor como um distúrbio alucinante capaz de enlouquecer a humanidade. Para Yorgos Lanthimos, que retorna com o seu parceiro Efthimis Filippou à escrita do argumento, o amor é humilhante, absurdo e uma pura insanidade kafkiana; neste seu novo projeto as suas personagens exibem o seu pior através de atos vulgares de devoção que acreditam ser sintomas da sua paixão. Uma bactéria desprovida de cura ou médicos dispostos a aderir na sua debilitação. Além desta ideia predominante, as narrativas são unidas pelos seus títulos e pela recorrente participação de um homem denominado como R.M.F. (Yorgos Stefanakos), isento de falas ou de uma verdadeira escolha nos seus bizarros destinos imprevisíveis. Ao seu redor, um elenco preenchido por fantásticos atores que marcam presença em cada história com uma nova personagem. No primeiro conto, Jesse Plemons interpreta Robert, um homem servo do seu patrão, Raymond (Willem Dafoe), que decide finalmente libertar-se destas algemas. No segundo, Daniel (Jesse Plemons) encara o regresso da sua mulher desaparecida, Liz (Emma Stone), com suspeitas de ser uma impostora. No último capítulo, Emily (Emma Stone) procura por um milagre, a pedido do seu culto. A obsessiva devoção destes indivíduos é, sem dúvida, um delírio preocupante, contudo, a devoção destes incríveis atores perante Yorgos Lanthimos é genuinamente admirável, entregando os seus corpos numa bandeja à sua arte invulgar com consequências divertidas, depravadas, desconfortáveis, perturbantes e simplesmente extraordinárias. As estrelas principais são Jesse Plemons e Emma Stone mas Willem Dafoe, Hong Chau, Margarett Qualley e Mamoudou Athie merecem uma profunda atenção pela sua natural aderência a este mundo extravagante do realizador.

Ciente do dever emocional e físico que as suas longas-metragens exigem, Yorgos reúne atores estabelecidos, confortáveis com as suas palavras incomuns e familiares com a sua visão singular, aptos para caminhar diante o seu espelho mágico do nosso mundo. Hunter Schaffer, que aparece num minúsculo papel, mencionou numa entrevista que recebeu uma mensagem do cineasta, simplesmente a perguntar se a atriz queria divertir-se com esta equipa durante um dia de produção. É uma percepção curiosa que encara o seu universo como um recreio e um circo de insanidade; uma tenda para uma realidade alternativa onde nada funciona se os artistas não estiverem dispostos a comprometer-se totalmente com carne, osso, sangue e alma nas suas misteriosas figuras, agindo como extraterrestes à procura do coração humano. O empenho deste elenco é evidenciado na intensa sexualidade de Kinds of Kindness. Contrariamente a Poor Things, que utiliza sexo como uma reflexão de independência, os prazeres da existência, e como uma metáfora para o júbilo de viver, esta sua nova obra retrata a nudez e a luxúria como clínica, desconfortável e burlesca – com um dos momentos mais hilariantes dos últimos anos –, opondo-se contra a sensualidade corporal. Personagens despidas, envergonhadas e vulneráveis; a pele nua é pintada como frágil, mais próxima de sangrar do que de um orgasmo. São protagonistas simultaneamente diretos nas suas emoções e reservados nas suas ansiedades, revelando demasiado das suas pessoas, todavia nunca o suficiente para divulgar o seu espírito autêntico. Para receberem o afeto que cobiçam o atalho está numa oferenda carnal, no despojar de identidade e de vontade individual. É mais fácil desistir da nossa mente pois a dádiva é divina e a dor apenas física. Yorgos nunca comunica ao público os caraterísticos medos das suas personagens, somente a presença da sua existência, como uma vírgula em todas as suas frases. Teoricamente é impossível de relacionar com os detalhes narrativos das suas viagens mas no seu centro são histórias sobre seres que divergem as suas vidas à procura de respostas, de um remédio para as suas ansiedades, algo que todos conseguimos compreender e sentir no nosso íntimo. Descortinando as suas escolhas bizarras, existe uma ideia profunda sobre a necessidade de amor para preencher o inevitável vazio. Neste momento, recordo que o título Histórias de Bondade é irónico mas permanece com um propósito pois as suas personagens encontram inúmeras oportunidades desperdiçadas para evoluírem, e para agirem com empatia e simpatia. A decência é sempre interrompida por obstáculos alheios sentimentais, infligidos por forças exteriores e interiores.

A sua pesada atmosfera constrangedora é sinalizada surpreendentemente com a famosa música Sweet Dreams dos Eurythmics antes dos créditos iniciais sequer irromperem pelo ecrã, estabelecendo uma energia leve que nunca regressa à película, intencionalmente. O segredo está nas letras: “Some of them want to use you; Some of them want to get used by you; Some of them want to abuse you; Some of them want to be abused.” Primordialmente, na simplicidade do seu título: Sweet Dreams. São Sonhos doces. Aliás, agridoces. Os típicos ângulos abertos nas obras de Lanthimos, comandados neste filme pelo director de fotografia, Robbie Ryan, e a banda sonora tenebrosa de Jerskin Fendrix, contida nos pequenos toques assombrosos do seu piano e exclamada no excesso de vozes horripilantes vindas de um coro malévolo, constroem uma miscelânea de macabros sonhos perversos indecifráveis. É uma intersecção entre sonho e pesadelo. A comédia do mórbido e o terror da gargalhada. Em cada curta, os seus devidos protagonistas mencionam enigmáticos sonhos que transformam a sua perspectiva. Kinds of Kindness funciona como um estranho sonho demasiado próximo da nossa realidade, com um elemento desligado que nos faz sentir sempre na dúvida se estamos prestes a acordar ou a adormecer. Sinceramente, mesmo adorando este filme, admito que a dúvida permanece.

Esta antologia sobre o amor representado como uma obsessão, uma demanda por controlo, poder e posse de outro ser, sexualmente e emocionalmente, assinala o regresso de Yorgos Lanthimos ao seu cinismo artístico, apontado em Dogtooth (2009) e The Lobster (2015). O seu componente cativante sarcástico, o seu absurdo humor visceral absolutamente hilariante e a sua aura magnética seca é o mesmo perfume patológico que vai perturbar e afastar o público das salas de cinema e manter a sua audiência reduzida a uma seleção de freaks e degenerados. Sinto a urgência de repetir as minhas palavras na minha crítica de Poor Things: Yorgos Lanthimos orquestra as suas composições como um Deus insano a brincar com marionetas incapazes de avistar os explícitos fios que controlam os seus movimentos. Sabemos que Yorgos não considera o seu papel de cineasta como um de Deus, preservando um espaço aberto de comunicação com os seus companheiros artistas, para expandirem os horizontes das suas histórias. Portanto, talvez, nós sejamos as marionetas. Nós somos a punchline. Seria frustrante e verdadeiramente enervante se não fosse tão engraçado e perspicaz porque os fios são sempre cortados antes de atingirmos os créditos finais.

4.5/5
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