Não nos parece arriscado dizer que nomes como o de Willem Dafoe ou o de Adam Driver são constantemente referidos como as tais pessoas que simplesmente não dormem e lançam mais filmes por ano do que as vezes que o português tradicional diz que “vai começar a dieta na segunda-feira”. Mas terá de haver um momento em que todos paramos coletivamente e nos questionamos o que se passa com Steven Soderbergh.
Desde que voltou daquilo que ele próprio dizia ser o fim da sua carreira como realizador em 2014 com o vibrante Logan Lucky (2017), Soderbergh já realizou seis filmes, duas séries, uma cerimónia dos Oscars e vários anúncios. A maioria dos projetos têm sido feito com orçamentos reduzidos, às vezes filmados em iPhones e quase todos eles a rondar 90 minutos. São também, à exceção de Logan Lucky, particularmente irritantes, pouco focados e, talvez o maior pecado que um filme pode cometer, bastante aborrecidos.
Felizmente, Kimi é o melhor trabalho de Steven Soderbergh desde que abraçou as plataformas de streaming. O thriller pós-pandemia enraizado profundamente em Rear Window (1954), que segue Angela Childs (Zoe Kravitz), uma agorafóbica que revê o comportamento de Kimi, um software como Alexa ou Siri mas que se distingue por ser monitorizado e melhorado por pessoas em vez de por Inteligência Artificial, e que ouve numa das suas revisões um crime a ser cometido, é um filme objetivo e bem conseguido além de não se levar demasiado a sério.
Esta é uma das características interessantes de Soderbergh nesta fase da sua carreira. Nada é levado particularmente a sério, o que por um lado retira alguma da carga dramática de um filme que lida com a sociedade de vigilância, a sobredependência da vida virtual e a ansiedade pandémica, mas que por outro lado lhe dá uma leveza de entretenimento e algum humor macabro, tornado-o uma experiência excitante ainda que com momentos de brutalidade bastante crus e desagradáveis quando somos envolvidos no mergulho que a narrativa dá no seu passado Hitchcookiano. É assumidamente uma recontextualização para o século XXI (e não a primeira) da história de Jim Stewart, mas com o charme autoconsciente que está em todos os filmes do homem que teve a irresponsável coragem de readaptar Solaris (2002).
O argumento do veterano David Koepp deixa espaço para que Soderbergh mostre esse mesmo charme meio arrogante, para expor de igual forma a pequenez e infantilidade de todas as suas personagens, seja um homem de negócios a ter uma reunião numa garagem a fazer de escritório e o conjunto pandémico de camisa e gravata com calças de pijama, ou uma jovem na casa dos 20 a partilhar fotografias de sítios onde não esteve. Ninguém está a salvo da superioridade intelectual de Soderbergh nos seus próprios filmes.
Esta racionalidade que traz para cima da mesa também contribui para construir os seus Universos porque sempre foi um realizador com uma capacidade estranhamente rara (estranhamente porque não devia ser assim tão rara) de lidar com tecnologia nos seus filmes e com problemas práticos. Como é que uma agorafóbica resolve um problema de dentição é um problema irrelevante à narrativa central, mas não deixa de acrescentar uma camada de realidade num filme que lida com crises bem reais, mas com uma atitude meio que relaxada em relação a elas, num equilíbrio, na maioria das vezes, bem-sucedido ainda que torne o filme parcialmente inofensivo.
Kimi é mais um filme em que Steven Soderbergh mostra o seu estilo cinético e dinâmico, mas desta vez ao serviço de um argumento bastante mais competente e objetivo do que qualquer um dos seus filmes a partir de 2017, que além de uma boa performance de Zoe Kravitz, traz também aqui e ali algumas achegas a esta sociedade Orwelliana em que vivemos, ainda que não com a profundidade desejável para o tornar mais do que um sólido cyber thriller.
1 comentário
Review descritiva que me colocou a par do que me esperava. E não falhou.