Uma presença iconicamente familiar
A um cineasta como este, com o seu longuíssimo e prestigiado curso de obras lançadas ao longo de muitas décadas, é atribuído um estatuto de eterna admiração e, com a sorte deste ainda lançar novo trabalho, uma automática e curiosa expectativa de qual obra-prima nos irá trazer desta vez. Escusado será dizer que era e continuam a ser, mais do que merecidos.
Killers of the Flower Moon é a nova longa-metragem de Martin Scorsese, estando este também presente nos créditos de argumento, ao lado de Eric Roth, baseando-se no livro de David Grann, com o mesmo título. Esta história, inspirada em eventos da vida real que envolveram assassinatos da tribo Osage, disputas de terras de petróleo e o ainda iniciante FBI, é contada através de Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), recém-chegado da Grande Guerra e sobrinho do poderoso empresário e filantropo William Hale (Robert De Niro), que rapidamente se apaixona por Mollie (Lily Gladstone), uma nativa da tribo Osage, sendo este o mote para várias intrigas sinistras e violentas.
É inegável a mestria que este veterano realizador traz consigo e a forma como a consegue contaminar às suas equipas para que todos os setores atinjam o seu melhor. Este é um filme tecnicamente muito bem conseguido, com apenas algumas falhas e solavancos, mas que conseguem ser esquecidas devido à intensidade de toda a narrativa e da forma como nos é apresentada. Há claramente uma honestidade e sentimento de justiça agressiva na forma como aborda um tema delicado da História norte-americana, tentando ser duro e sem taboos dentro dos parâmetros do drama “hollywoodesco”, obviamente. Isto pode levar muitas pessoas a gostarem do filme pela sua audácia ao estar a tomar riscos dentro do panorama norte-americano, como também pode levar outras tantas a acusar o mesmo de não ser ousado o suficiente com o tema por causa das mesmas circunstâncias, bem como dos receios que tocar em algo tão controverso possa trazer.
A verdade é que a narrativa acaba por se moldar em formatos já familiares e conhecidos do drama/thriller a que Scorsese nos habituou. Existem arcos para as personagens que são claramente definidos e bem elaborados, complexos como Scorsese costuma ser, com um drama palpável e muito real devido à profundidade de todas as personagens, cheias de camadas, para além de potenciar as suas personalidades, criando assim pessoas que são credíveis e interessantes de seguir.
Tudo isto é orquestrado numa estrutura clássica de Scorsese, com imensas narrações, ritmo energético e até uma pequena dose de comédia, bem integrada e sem nunca esquecer o respeito pelo silêncio e pela seriedade das cenas. Para ser sincero, é um filme que é mais do mesmo neste estilo de drama de crime do cineasta, numa veia de Goodfellas (1990) ou The Irishman (2019). Obviamente que mais de Scorcese é sempre ótimo para se ter, mas ao mesmo tempo acaba por se tornar um pouco previsível em termos de enredos e desfechos. Mesmo em termos temáticos, a questão da traição, da ganância e da redenção já foi mais que abordada desta forma pelo trabalho do mesmo, o que pode vir a saturar alguns.
O ponto de referência e de diferença nesta história é também o verdadeiro coração do filme: a relação entre Ernest e Mollie. Esta relação amorosa é o alicerce emocional de toda a narrativa e consegue-nos agarrar desde o início ao ser muito sincera e verdadeira consigo mesma e com o seu contexto. Há uma real crença no amor destas duas pessoas e que apesar de tudo o que acontece entre e à volta deles, esse amor é presente e poderoso, seja para o bem ou para o mal, para se protegerem um ao outro ou para descortinar um ambiente tóxico. Esta complexidade na relação é mais que bem-vinda pois ajuda a pincelar toda esta história com um alicerce sólido e capaz de sustentar essa credibilidade de todos os acontecimentos mais extravagantes. Infelizmente, mais para o clímax e final do filme, a relação deixa de ser tanto o foco da história e passa para segundo ou até terceiro plano, o que faz sentir a falta da mesma e o buraco emocional que deixa no desenrolar final do enredo.
A dar vida a esta relação e a todo o filme, está um elenco de luxo e de primeira categoria, sem nenhuma exceção. Obviamente que os grandes nomes De Niro e DiCaprio estão mais que excelentes nestes papéis e trazem não só a sua incrível habilidade para o palco, mas também as suas invejáveis dinâmicas duradouras com um realizador que não só os potencia, mas também a todos os atores com quem trabalha, o que gera a extrema qualidade de representação deste filme, com DiCaprio a apresentar um papel único no seu reportório, cheio de nuances e maneirismos como nunca o vimos a fazer. O destaque de atores, no entanto, vai para Lily Gladstone, uma atriz pouco conhecida do grande público mas que depois deste filme, de certeza que vai dar que falar. Lily entrega uma performance ponderada mas poderosa, muito minimalista mas desprovida de limitações, mesmo que não se veja a olho nu. A atriz consegue não só conjurar uma personagem legítima e intrigante como também consegue contracenar em conjunto com a energia extravagante de DiCaprio, usando em grande parte pequenas expressões e olhares, dando assim ênfase e corpo às poucas cenas mais explosivas que tem. É claramente um caso de uma atriz que consegue fazer imenso com tão pouco.
Desta feita, ficamos com um filme que é, sem grande novidade, uma enorme recomendação e mais uma obra cinematográfica excelente, tanto a nível artístico como de entretenimento, no panteão de obras-primas deste icónico senhor. A sua longa duração não se faz sentir, graças a um ritmo impecavelmente atingido e apenas peca na sua previsibilidade assente numa estrutura já familiar que pode incomodar alguns. O tema por si só é muito interessante e o toque de Martin Scorsese deve ser mais que suficiente para fazer qualquer um querer ver com os seus próprios olhos.
3 comentários
[…] Killers of the Flower Moon (Apple Original Films/Paramount Pictures) […]
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Uma boa leitura!
Foi um filme que me encheu as medidas!