O comboio em movimento é uma das imagens mais cinemáticas da sétima arte, aliás este é o derradeiro visual representativo de cinema. Uma das primeiras curtas-metragens criadas, L’arrivée d’un train à La Ciotat (1896), permanece relevante na nossa cultura actual como uma lenda: o filme que causou o público inteiro a fugir, com receio de serem atropelados. É o comboio que renovou o género do Western, que continua a ser associado ao deserto juntamente com os disparos de cowboys. Constantemente comparado com a evolução da câmara, ambos partilham um simbólico progresso no nosso mundo, implicando velocidade, tecnologia e transformação. Apropriando-se desta máquina, o cineasta Nikhil Nagesh Bhat cria um dos maiores sucessos de festivais dos últimos anos, elaborando uma promessa especial de horror e acção no seu simples todavia apropriado título. Uma única palavra, acompanhada pela icónica imagem mencionada, é suficiente para comprar um bilhete e entrar entusiasticamente nesta viagem cinemática. Até já foi anunciado um remake americano. É assim que medimos a qualidade de um filme internacional, quando Hollywood decide produzir a sua versão antes sequer do original marcar o seu nome pelo público.
Kill, a longa-metragem indiana aclamada online como um grandioso acto sanguíneo de vingança, é uma espécie de novela intensa e violenta sobre o romance entre Amrit Rathod (interpretado pelo carismático Lakshya) e Tulika Singh (interpretada com destreza e beleza por Tanya Maniktala). Determinado a impedir o seu casamento arranjado, Amrit, o comando do exército, persegue o amor da sua vida num comboio para fugirem juntos e formarem um novo destino. Love and Violence misturam-se quando uma família criminosa infiltra-se nestas carruagens, aterrorizando os passageiros com armas, à procura de sucesso financeiro, e encontrando o seu futuro de riquezas na presença de Tulika e dos seus pais milionários.
A esperança de violência extrema induzida pelo marketing, pela narrativa e pelo próprio título desvanece inicialmente através de lutas contidas e uma brutalidade suave, desprovida de sangue, ossos partidos ou sofrimento. Uma decepção que converte a audiência em monstros belicosos, transportados para uma arena medieval a exclamar por tripas, olhos e mortes, e a ansiar pela energia dramática de Bollywood imbuída nestas batalhas. Durante a sua primeira hora, Kill consegue manipular o espectador a eventualmente suprimir os seus desejos sádicos, desistindo do potencial no ecrã e contentando-se com uma experiência decente enaltecida por uma vivacidade audiovisual repleta de slow motion dedicado a exibir as suas estrelas principais como prémios numa vitrine – justificadamente pois o seu protagonista é, sem dúvida, o motivo principal para aderir nesta matança como uma multidão de stans a defender as gargantas cortadas pelos seus popstars favoritos, Slay my King! –, são dois primeiros actos moderadamente divertidos até que o realizador surpreende ao puxar a alavanca, alterando a direção da sua narrativa e abandonando o seu ambiente suave com um dos melhores title drops de sempre. A tensão aumenta, os olhares intensificam-se e o medo apodera-se completamente deste gangue de inimigos, a maioria simplesmente a tentar ganhar dinheiro suficiente para orientar as suas respectivas vidas privadas. Numa carruagem, feridas abertas a sangrar pelos assentos e pelos vidros, noutra carruagem indivíduos a chorar pelas mortes dos seus conhecidos, amigos e familiares. São elementos que elevam esta longa-metragem entre inúmeras obras genéricas de vingança, mesmo quando o seu comentário acerca de classes sociais e o desinteresse da polícia na dor do povo revela-se atrapalhado e sinuoso, afinal esta é a história de um homem a lutar por uma benevolente família abastada.
Nesta nova estação, Kill persiste prejudicado pela sua coreografia de acção repetitiva demonstrando dificuldades em manusear-se nestes cenários fechados. O sangue marca o seu estrelato mas o movimento continua praticamente sanitizado com uma direção de fotografia e edição à Hollywood. Inevitavelmente recordamos obras como The Raid (2011) ou Train to Busan (2016) e o seu uso incrível de espaço para seu benefício, aproveitando todos os seus aspectos para estabelecer criativamente um ambiente claustrofóbico, assustador e poderoso enquanto o comboio de Kill é vastamente mais interessante de observar em antecipação do perigo ou meramente quando as personagens estão a conviver do que durante as facadas, disparos ou corpos caídos. Com a excepção de alguns momentos fantásticos aterrorizantes onde o protagonista assemelha-se a um Bicho Papão, os restantes confrontos permanecem comuns e banais. Isto não significa que Kill não entrega a sua violência numa bandeja reluzente, com o nosso sorriso aberto reflectido, simplesmente implica que a sua promessa principal nunca é completamente cumprida.
Quando a câmara apresenta o protagonista com os toques românticos de uma guitarra ou quando o argumento salienta as frases amorosas e poeticamente silly expelidas pelo seu melhor amigo, Viresh (Abhishek Chauhan) – talvez um dos melhores melhores amigos de sempre –, quando vítimas e inimigos ficam indistintos entre as lágrimas e o sangue, quando o romance revela similar impacto a uma morte é quando Kill exibe o seu verdadeiro poder, no topo de uma montanha. O seu excesso não faz parte do charme, é o seu charme. Infelizmente, após uma comovente conclusão, compreendemos que o destino ultrapassou a sua linha e sentimos que a sua localização, o seu maior apelo de marketing, é também o seu maior adversário pois os gritos de Kill são ofuscados pelo som do próprio motor.