Marie-Jeanne Bécu nasceu em Vaucouleurs a 19 de Agosto de 1743, fruto de uma relação ilegítima entre a sua mãe, cozinheira/costureira, e de um pai desconhecido, possivelmente um frade num convento em Paris, dizem as más línguas. Graças a um amante da sua mãe foi-lhe possível ter uma educação superior num convento, algo que seria vedado a alguém vindo da sua condição social. Aos 15 anos abandona a vida do convento e experimenta uma infinidade de trabalhos desde cabeleireira e camareira numa família rica a empregada de balcão de uma conhecida loja em Paris, La Toilette. Graças a esta experiência de vida conseguiu observar e absorver como funcionava a alta sociedade parisiense. Foi também a razão para conhecer Jean-Baptiste du Barry, o conde de Barry de quem se torna amante. A sua vida de libertinagem e de contacto com a elite do mundo da música e das artes permite-lhe, ainda mais, alargar o seu próprio grau de influência.
É, para esta fase da vida da Madame du Barry, que o filme de Maïwenn nos transporta. A própria realizadora veste a pele de Jeanne du Barry mesmo antes de ser apresentada ao rei de França, Luís XV (Johnny Depp) onde é introduzida a esse mundo de regras, etiquetas e intrigas da corte real francesa no séc. XVIII, instalada no deslumbrante Palácio de Versalhes.
A palavra-chave nesta produção é mesmo essa, Versalhes. Ter o privilégio de executar o filme onde tudo aconteceu na realidade dá uma aura de autenticidade e sumptuosidade impossível de igualar em qualquer cenário do mundo inteiro mesmo o mais realista e opulento. Juntar a isso um design de set centrado nos pormenores, um guarda-roupa e maquilhagem fiel à época mas com pequenos detalhes modernos e uma irreverência, em momentos, muito bem-vinda. É importante também falar do rigor colocado na recriação da corte real francesa com as suas regras, etiquetas e acima de tudo a intriga e o constante olho crítico de todos os presentes sobre qualquer erro ou alteração do status quo vigente. Fazer tudo isto com um orçamento bastante inferior a filmes de época de Hollywood (cerca de 22,4 milhões de euros) é um verdadeiro milagre. O uso de câmaras de 35mm dá um caráter épico à fotografia que relembra clássicos históricos europeus como Barry Lyndon (1975) de Stanley Kubrick e Il Gattopardo (1963) de Luchino Visconti, e o trabalho de direcção de fotografia de Laurent Dailland a usar a tecnologia de drones, em planos aéreos estáticos, empresta modernidade, e um uso criminal de grandes planos, quase obrigatório no magnífico cenário que tiveram a bênção de pisar e acima de tudo de filmar, amplifica o regozijo no que se passa no ecrã de cinema.
Nas interpretações a desigualdade é imensa entre os secundários e o duo principal composto por Maïwenn e Johnny Depp. Maïwenn surge desadequada ao início mas a sua energia contagiante, principalmente quando chega à corte real francesa, acaba por conquistar o espectador. A química com Johnny Depp é de uma ternura comovente, quando estão em diálogo, mas não tão impressionante nas cenas de intimidade do casal. Esta opção por um caminho mais tradicional, longe da nudez e do amor carnal, surge plástica e pouco realista, dificultando ao espectador acreditar no seu amor. Johnny Depp opta por um caminho de contenção e é a escolha acertada para um homem como Luís XV, sempre com todos os olhos em si. Longe de histrionismos consegue comover e intimidar, de igual modo, com o uso de expressões, olhares ou silêncios carregados de significado. É por isso o contraponto perfeito para Maïwenn, uma mulher livre, desinibida e sem medo de cortar o protocolo e as regras de etiqueta. Nos secundários destaques óbvios para Melvil Poupaud, como Conde du Barry, marcante no início e Benjamin Lavernhe, como La Borde, o confidente e homem de confiança do rei, começando contido e “escravo da etiqueta” e terminando um homem liberto das suas amarras emocionais e uma melhor pessoa por isso, num arco deveras interessante. Em sentido contrário, e pela negativa, a família próxima de Luís XV surge unidimensional ou na sua mesquinhez sem características redentoras nas filhas (Suzanne de Baecque, Capucine Valmary e Laurel Le Velly) ou como um santo, sem falhas no carácter, no filho, o herdeiro do trono francês, Luís XVI (Diego le Fur). Todos os restantes surgem assim, unidimensionais, em menor ou maior grau, acabando por revelar as fraquezas do argumento na construção de personagens. Existem mais opções infelizes na escrita como a inabilidade de cortar cenas irrelevantes para o avançar da narrativa como alguns episódios da infância e da adolescência de Jeanne du Barry. Sente-se, em certa medida, um evitar em tocar muitos assuntos polémicos, num tempo em que ser mulher era uma condenação à nascença, mencionando-os de relance ou evitando falar deles, optando e apostando no humor das situações para suavizar o sofrimento de Jeanne du Barry.
É na sumptuosidade do Palácio de Versalhes e na atenção ao pormenor da recriação histórica da corte francesa que Jeanne du Barry nos conquista mas é na jovialidade e entrega de Maïwenn, neste sonho de levar a vida desta mulher a todo o mundo, que nos prende até ao fim. Fica apenas um amargo de boca pela quase total ausência da sua irreverência e do inexistente comentário social, ambas características tão marcantes dos seus filmes.