Morrisa Maltz é uma das cineastas norte-americanas mais entusiasmantes a surgir nos últimos quatro anos, participando numa tradição de docuficção que tem crescido recentemente com o sucesso de pares como Chloé Zhao e Sean Baker. Também Maltz funde o real e o imaginário nas suas duas longas-metragens, The Unknown Country de 2022 e Jazzy – este último surgindo como uma espécie de spin-off do primeiro.
Jazzy, que teve a sua estreia global no festival Tribeca em Nova Iorque em Junho e passou pelo Tribeca Lisboa meses depois, foca-se numa personagem previamente introduzida na primeira longa de ficção de Maltz, a pequena Jasmine, acompanhando os seus últimos anos de infância e primeiros anos de adolescência numa povoação predominantemente nativo-americana em South Dakota. Através de linhas esbatidas entre o facto e a ficção, a realizadora cria uma protagonista híbrida que partilha o nome, a vida, e muitas das suas experiências com a atriz que lhe dá vida, a jovem Jasmine Bearkiller Shangreaux.
O guião altamente flexível, informado pelas vivências da Jasmine verdadeira, assim como a total confiança no seu elenco de não atores pré-adolescentes, permitiram a Maltz produzir um filme único no que respeita a sua autenticidade e aproximação do mundo real. Jazzy surge pouco preocupado com questões de enredo, optando antes por capturar a estrutura não linear e ocasionalmente arbitrária da vida real, e colocando na evolução emocional das personagens o peso de conduzir a narrativa.
No seu centro, encontra-se a amizade entre Jazzy e Syriah (interpretada por Syriah Fool Head Means) que é eventualmente ameaçada por duas mudanças importantes nas vidas das duas meninas. Apesar das referências ao amor romântico, é esta relação platónica que consome a maioria dos dias deste par. A melhor amiga, nesta fase da vida, é a coisa mais importante para uma menina enquanto âncora e bússola para o desenvolvimento da sua personalidade e dos seus interesses. Esta é uma experiência universal que Maltz captura de uma forma quase inédita. As conversas sem sentido, as brincadeiras com peluches, maquilhagem e cabelos, as promessas sobre o futuro, a descoberta da cultura e dos rituais nativo-americanos, a conexão com a família e as saudades causadas pela ausência são alguns dos episódios que Jazzy cristaliza numa espécie de cápsula temporal que a verdadeira Jasmine irá, certamente, valorizar um dia.
Em poucos anos, a personagem amadurece, experienciando o seu primeiro desgosto, a sua primeira perda e o seu primeiro pretendente. São os anos mais vitais no desenvolvimento de uma criança e Jazzy apresenta-os, quase sem intervenção, para o espectador tirar as suas próprias conclusões. Pelo meio, surge uma boa dose de frases memoráveis e momentos propícios a gargalhadas graças ao labirinto fascinante que são as mentes dos miúdos que conseguem entregar desempenhos convincentes e um à vontade invejável em frente à câmara, muito por mérito da realizadora, que se nota ter conseguido criar um ambiente confortável que permitiu aos sujeitos do seu filme serem quem são, sem julgamento.
A fotografia naturalista e handheld de Andrew Hajek contribui para o sentimento de estarmos perante um documentário, e aproxima-nos das vidas destas crianças, acompanhando, sempre, com a câmara e a luz, a diversão, melancolia e incerteza que as permeia. O elemento que foge mais ao realismo da imagem e do conteúdo do filme é a sua banda sonora, composta por Alexis Marsh, que assume proporções muito mais épicas e reflete não as imagens pouco produzidas e simples que vemos no ecrã, mas sim a intensidade com que se vive cada emoção e descoberta quando se é mais novo.
Jazzy é um filme incrivelmente especial e sincero que explora tanto a universalidade como a idiossincrasia da infância da sua protagonista. Este não obriga ao visionamento de The Unknown Country, mas quem tiver curiosidade sobre o trabalho de Maltz e quiser ver uma atuação lindíssima de Lily Gladstone, terá certamente interesse em espreitar o filme de 2022 também.