Irréversible (2002)

de Sofia Alexandra Gomes

Le Temps Détruit Tout

Alex (Monica Bellucci), namorada de Marcus (Vincent Cassel), é violentada e agredida num túnel em Paris. Ele e o seu antigo namorado, Pierre (Albert Dupontel), encolerizados, alimentados por uma sede de vingança sem igual procedem à descoberta do agressor, percorrendo as ruas da cidade. É este o ‘ponto de partida’ de Irréversible, que recorre à analepse por meio de múltiplos flashbacks para nos mostrar o desenvolvimento desta senda motivada pela cólera.

Inicialmente o filme demarca-se, entre outros motivos, pelo seu plano visual de travelling, aspeto esse também determinante em Enter The Void e Clímax, outros filmes do realizador franco-argentino Gaspar Noé, de 2009 e 2018, respetivamente. Esta é uma técnica distintiva do realizador, cuja execução é verdadeiramente notável. Em Irréversible, ou nos filmes anteriormente mencionados, o objetivo da sua utilização passa por transmitir a sensação de que estamos no local onde decorre a narrativa, a vivenciar as cenas e, de facto, esse propósito é realmente cumprido. Gaspar Noé (quase) que nos teletransporta para as suas histórias com uma maestria inigualável, que acredito e considero constituir já uma marca da sua cinematografia.

O soundtrack escolhido para o filme, da autoria de Thomas Bangalter, só intensifica ainda mais a experiência que o espectador tem da narrativa ao fazê-lo crer que está a vivê-la in loco. Neste caso, a música Rectum especificamente, – nome do bar gay, de BDSM (Bondage, Dominação, Sadismo e Masoquismo) que surge na película – desperta, em nós, inevitavelmente um sentimento de ansiedade enorme e até invoca uma certa raiva que desconhecíamos ter. É este um efeito fortuito? Obviamente que não. Trata-se antes de um incómodo deliberado – sim, incómodo – que Gaspar Noé quer imprimir em quem assiste. E resulta.

Diz-se que o conteúdo é mais importante do que a forma, que, no fundo, é o conteúdo que é essencial. Normalmente sou adepta deste pensamento, mas ao falar de Noé penso diferentemente. É a forma, a sua forma única de experimentação visual, de não convencionais movimentos de câmara que nos transformam em fantasmas e espíritos que observam o espaço do enredo de cima, que vinga em absoluto a mensagem que pretende passar nos seus filmes.

Há nele uma conceção de cinema não-tabu; uma ótica que perspetiva que na sétima arte tem de se mostrar tudo, deve mostrar-se tudo, inclusive – e se calhar até especialmente, na perceção de Gaspar e na minha – o sujo e o negro dos recônditos da Humanidade. Este paradigma de aceção cinemática é altamente alavancado pela sua forma: pela forma de Noé.

Em Irréversible há a exposição do nojo que está infiltrado no homem, corrompido pela vida mundana; há a violência na sua forma mais pura e crua, a transfiguração do homem pela mão da violência e o homem violento per se; há machismo; homofobia; há a luxúria, etc. Tudo isto sem que o desenvolvimento destes temas seja gratuito, sensacionalista. Contrariamente: é real, é grotesco, é sobretudo necessário. É necessário que se olhe para tudo o que Irréversible traz aos ecrãs tal como é: horrível. E essa horribilidade deveria mover-nos para a ação e para a conversa, enquanto sociedade. Não deveríamos jamais fechar os olhos aos assuntos que o realizador franco-argentino explora e explana nesta obra e nas demais.

Irréversible é uma sinestesia brilhante, assustadora, desconfortável e assoberbante. É impossível não chorar, não enraivecer, enfim, não empatizar com as dores de Alex, Marcus e Pierre. E esse feito não é para qualquer um.

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