Irati (2023)

de Pedro Ginja

A mitologia basca não sobreviveu, em grande parte, com a chegada do cristianismo entre o século IV e XI d.C. O que hoje se sabe chegou através do estudo de lendas, do estudo de designações antigas ou nos escassos relatos de rituais pagãos praticados pelos bascos. Os bascos, antes do cristianismo, eram regidos pelas forças naturais (Sol, Lua, Água, Montanhas, Florestas, etc) que assumiam formas humanas. A figura mais importante deste sistema de crenças era Mari – uma divindade feminina que personifica a beleza da natureza ao qual se associava Sugaar, como o seu esposo, representando a raiva do céu, através dos trovões e dos relâmpagos. Mas não se fica por aqui pois muitos outros nomes, eventos e crenças ainda sobrevivem, até aos dias de hoje, e apesar da pequena influência real na cultura basca não deixam de ser referenciados como belíssimos contos fantásticos. Mesmo mais de 10 séculos depois.

Irati, realizado por Paul Urkijo Alijo, explora a riqueza desta mitologia com um regresso ao passado aquando do processo de reconquista da Peninsula Ibérica aos Mouros. Nele encontramos Eneko (Eneko Sagardoy), filho de um lendário combatente basco que sacrificou a vida pela sobrevivência do seu povo, e que agora retorna a casa para cumprir uma promessa ao pai. Com uma ameaça pendente sobre o seu reino, Eneko decide partir em busca de um tesouro lendário que lhe poderá dar a vantagem nesta luta desigual. Parte nesta demanda com Irati (Edurne Azkarate), uma misteriosa jovem, que guarda um terrível segredo. Conseguirá ele manter a sua promessa ao pai sem por em risco o seu reino e a sua moral?

Nada nos prepara para a grandiosidade que é Irati e da riqueza desta mitologia do qual pouco ou quase nada sabemos. Somos introduzidos a esta história com a beleza e a grandiosidade da natureza, no caso em questão, do país basco mais precisamente a Floresta Iraty, que baptiza também uma das personagens principais. Ter como pano de fundo um cenário com esta sumptuosidade reveste esta produção com uma aura épica inigualável por terras europeias. O cenário natural não seria nada sem uma fotografia de qualidade elevada e Gorka Gómez Andreu tem de ser mencionado tanto em exteriores como nos interiores com um uso imaculado de luz, planos inesquecíveis e uma atmosfera de fantasia conseguida na perfeição. A inevitável e, na minha opinião, única comparação possível parece ser com a saga do Senhor dos Anéis com a qual partilha, também o género da fantasia e a afinidade com os efeitos práticos, maquilhagem e a riqueza dos adereços. Comparando os orçamentos de ambas as produções podemos mesmo afirmar que este filme faz um milagre digno de ser mencionado nos anais da história cinematográfica colocando o espectador num mundo tão real que quase lhe parecemos tocar. Os efeitos especiais estão também presentes, são de boa qualidade e usados apenas em momentos chave. Existe uma grande batalha no início da história que apesar de claramente limitada por questões orçamentais contorna as dificuldades com uma coreografia apurada, sangue a jorros, ritmo alucinante e um falso plano sequência genial, do qual apenas sei ser falso pois o realizador o admitiu em entrevista.

Talvez o seu ponto menos positivo, mas bem longe de mau, são as interpretações dos actores principais. Eneko Sagardoy é competente mas pedia-se um pouco mais de intensidade na expressão de emoções. Edune Azkarate, no papel de Irati, consegue essa intensidade com facilidade mas depois tem dificuldades nos breves momentos mais contidos da história. Nada a apontar à intensa química entre ambos, referência inevitável para Elena Uriz, como Luxa, a líder pagã cuja fisicalidade dá uma força extra à sua personagem. Kepa Errasti como Belasko, por outro lado, nunca consegue encarnar um vilão convincente em nenhum momento da história, um papel cujo casting deveria ter sido mais cuidado. Um vilão mais marcante teria, com certeza, levado esta produção para níveis ainda mais relevantes.

É inevitável um futuro namoro de Hollywood com Paul Urkijo Alijo e o revitalizar do turismo no País Basco tal é o milagre operado neste Irati. A surpreendente riqueza da mitologia basca aliada a uma história de amor recheada de tramas de vingança e um forte subtexto religioso revestem a história de uma complexidade inesperada. O clima de guerra religiosa entre o cristianismo e o paganismo é o cerne da história mas nunca caí na escolha de lados certos ou errados. Apenas se preocupa em ser verdadeiro com as suas personagens e o que as move, seja o amor, a ganância ou ambos.

Conseguir conter tudo isto em apenas 114 minutos é obra e torna este Irati essencial para fãs de fantasia e não só.

4/5
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