Parece haver um botão de reset nos noticiários de todo o mundo e que alguém acaba por carregar para passar para o próximo assunto. Em Fevereiro de 2022, iniciou a guerra na Ucrânia e quase dois anos depois a atenção sobre o assunto é cada vez menor. Em parte devido a outro acontecimento que lhe roubou o mediatismo, a guerra na faixa de Gaza em Outubro de 2023, e que ainda hoje ocupa a maior parte dos noticiários mundiais. Alguém se lembra do nome Alan Kurdi? É natural que não se lembrem, de momento, a quem se refere pois o caso remonta a 2015. Trata-se do menino de 3 anos cujo corpo deu à costa morto, após um naufrágio no mar mediterrâneo, e cuja fotografia correu e chocou o mundo. Deu azo a um aceso debate e à apresentação de inúmeras soluções para o problema da emigração do norte de África para a Europa, mas passados 8 anos pouco ou nada mudou e o número de mortos continua, aliás, em crescimento. De 1993 a 2018 há registo de 34.361 mortes na travessia do mar Mediterrâneo, mas se nos centrarmos neste último ano de 2023 são mais de 2.500 vidas perdidas.
Pouco conhecido ou ignorado por muitos, é a outra parte desta odisseia, a viagem por terra da África Ocidental ou do Leste e do Corno de África até à Líbia, que é uma das mais perigosas e mortíferas do mundo, e ainda continua muito longe da atenção pública mundial. É assustador pensar no número de vidas perdidas nesta travessia pois não há qualquer tipo de contabilização. É exatamente até aqui que Io Capitano de Matteo Garrone nos leva, ao mostrar essa viagem do ponto de vista de Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), dois primos a viver em Dakar, no Senegal, e que decidem, também eles, deixar a família e procurar uma vida melhor na Europa. Os perigos e a dimensão da viagem são bem maiores do que ambos esperavam e a certeza de chegarem começa a transformar-se em medo de ficarem pelo caminho. Conseguirão eles terminar a sua epopeia rumo ao sonho europeu?
Tudo começa com uma apresentação da vida no Senegal, cheia de cor, de música e dança ao ritmo africano e do valor da família, mas também reflecte as condições de vida sub-humanas, o desemprego e o trabalho precário. Acima de tudo, Matteo Garrone quer mostrar a falta de perspectivas de quem por lá vive, pois apesar de felizes não há espaço para o sonho para além da realidade de sobreviver no dia-a-dia.
Seydou Sarr, no papel de Seydou, conquista-nos de imediato com a sua paixão pela vida, pela devoção à família e pela naturalidade com que parece sentir esta história. Desde o fervor e a intensidade com que toca tambor num festival de música na terra natal, até ao plano final de libertação das emoções contidas durante a viagem. Para um primeiro grande papel como actor é um feito deveras impressionante. Tanto ele como Ndeye Khady Sy, no papel de sua mãe, parecem trazer com eles a mágoa de um povo, de uma geração de “irmãos e irmãs africanas” perdidas neste sonho com pele de pesadelo. Para eles, isto é pessoal e há um claro sentido de dever em transmiti-lo ao resto do mundo. Moustapha Fall, como Moussa, parece apenas encontrar a sua personagem durante a longa travessia do deserto. Torna-se, nesse momento, o principal motivador e a voz da razão para Seydou. É bonita a relação de amor e lealdade entre ambos, e que parece crescer a cada passo dado rumo ao seu destino.
O argumento é exímio em revelar o perigo que se avizinha e não demora a colocar-nos numa crescente espiral de medo. Os sinais de morte são constantes, assim como a falta de empatia dos que lucram com este pesadelo indescritível. O pior da natureza humana apresenta-se como actor principal e o sofrimento ininterrupto torna-se difícil de suportar. Matteo Garrone parece fraquejar e inclui momentos metafóricos indiscutivelmente belos, mas que ocultam a angústia sentida por todos os anónimos que não chegam ao destino pretendido e anestesiam o espectador para o martírio dos seus heróis. Pode-se justificar como mecanismos de defesa do suplício sofrido, e que os próprios tentam amenizar, mas esta opção acaba por impactar a intensidade com que sentimos o final da viagem de Seydou e Moussa.
A viagem sonora de Andrea Farri, pelos sons e ritmos de África é inspiradora e bebe, também, do talento do seu protagonista Seydou Sarr, que empresta a sua voz, língua e alma africana para criar uma maior ligação do espectador ao continente que retrata. Nem sempre mantém essa vontade de espelhar o continente e, por vezes, soa demasiado genérica nos clichês habituais de viagens “heróicas” desta dimensão, quando era pedido uma maior ênfase na imensa diversidade musical africana, aqui relegada aos ritmos e ignorando as claras influências arábicas e berberes dos países por onde passa a história.
Visualmente é um filme marcante por ter a possibilidade de filmar nos ambientes em que tantos destes migrantes sofrem durante a viagem. As longas e quentes viagens por entre as dunas do Sahara, são reveladas na sua imensidão e na insignificância humana pela lente de Paolo Carnera e têm neste ambiente natural as suas cenas mais belas. Os interiores bebem da luz natural usada para emoldurar os seus actores e intensificar o pó e os fumos que dominam o ambiente. Para as cenas nocturnas apenas a escuridão, aliviada por luzes impostas pelos faróis de carros. Perto do final, dominam os planos aproximados de rostos e corpos anónimos amontoados e iluminados por uma luz abrasadora que exacerba o caos e a confusão da situação no espectador. O som, particularmente neste trecho do filme, é também impressionante, como catalisador da transformação operada em Seydou, e que culmina num dos mais inspiradores planos finais do cinema nos últimos tempos.
Matteo Garrone procura revelar esta realidade que a Europa continua a varrer para debaixo do tapete, com a odisseia homérica de Seydou e Moussa como representantes de um continente que continua a perder os seus filhos. Ao revelar África na sua dor e sofrimento, o argumento encontra a sua verdade mas cede às pressões de alívio da sua angústia para anestesiar o espectador.