Inu-Oh (2022)

de João Iria

Na Terra do Sol Nascente, dita a Lenda de um artista Noh que entregou o seu corpo à arte, revoltando o xogum – líder militar supremo. Inu-Oh era o seu nome e somente o seu nome permanece na história; o seu corpo extinguindo-se em relatos espalhados pela nação como fumo nascido pelas chamas da insurreição. As suas cinzas manuseadas como tinta no romance de Hideo Furukawa, Tales of the Heike: Inu-Oh, que, através do olhar irreverente de Masaaki Yuasa, culminou nesta tempestuosa adaptação cinemática sobre a arte como um inevitável canto político, Inu-Oh.

Situado durante o período Muromachi, este ambiente de desordem e divisão serve como palco para uma ligação emocional e artística entre Tomona, um jovem cego, mestre do instrumento musical, Biwa, e Inu-Oh, um rapaz amaldiçoado com diversas deformidades físicas e uns sick moves na pista de dança. O que inicia como um conto místico imbuído em tradição e repleto de contexto histórico e cultural eventualmente baila para um faustoso nonstop concerto de rock, onde um instrumento ancestral revela uma sonoridade que ultrapassa o próprio conceito de tempo. Repentinamente, Noh, uma representação teatral (com cerca de 600 anos) cujos artistas empregam máscaras, canções e coreografias corporais para partilhar histórias clássicas nas suas narrações, submete-se à tatuagem do nome Yuasa e da voz de Avu-chan – líder da banda Queen Bee e personagem titular desta longa metragem. Confusos mas curiosos? Bem vindos à filmografia de Masaaki Yuasa.

Ler esta sinopse exige uma mente aberta a estranhas combinações de palavras que parecem contradizer-se com cada espaço; ou simplesmente com frases que clamam consistentemente por pontos e vírgulas. Masaaki Yuasa é um cineasta de pontos e vírgulas. Um artista que vive no género da animação pois somente este meio consegue conter a sua maníaca e alucinante criatividade. Até as suas criações mais moderadas conseguem afugentar espectadores cerrados aos seus flashes excêntricos. Yuasa destaca-se como realizador, entre os seus contemporâneos, precisamente pelo seu estilo de realização peculiar, disposto a mergulhar em dispersas tintas para atingir novas cores. O exagero é somente uma sugestão para Yuasa, que inspira minimalismo e expira surrealismo – o oposto também funciona –, substituindo formatos de animação numa única sequência, consoante a sua inspiração dramática. Esta natureza compensa a intimidante densidade histórica que rodeia esta obra. As suas imagens extravagantes e energia musical absorvente segue sempre uma linha de lógica emocional perante as personagens, com um expressionismo vivaz prioritário suficiente para a audiência abraçar a sensação de sobrecarga informativa.

Inu-Oh captura perfeitamente as suas sensibilidades como artista; invadindo um ambiente histórico e culturalmente fiel com anacronismos musicais e visuais, que elaboram um show de teatro Noh com uma guitarra elétrica. É um anime Rock Opera cujas cordas metafóricas invocam por tradicionalidade enquanto as suas vozes clamam por modernidade. Um género nascido da rebeldia que sente-se completamente apropriado à mente de Yuasa. Assim encontramos os protagonistas desta longa-metragem a produzir espetáculos semelhantes a Jimi Hendrix ou Freddie Mercury em pleno século XIV, com audiências a replicar coreografias atuais e a comportarem-se como stans dos BTS.

It’s a banger. Como dizem os jovens e, aparentemente, este crítico de 30 anos que demonstra estar numa crise de meia-idade antecipada. As suas atuações comprovam-se como desafios para a audiência manter-se sentada, invés de simplesmente saltar ao ritmo destas composições absolutamente extraordinárias. Para espectadores distraídos, a narrativa aparenta desaparecer completamente no segundo acto deste filme, todavia esta perdura nas sequências musicais que tocam notas dos temas explorados neste argumento, desde a amizade entre os dois protagonistas originada na sensação partilhada de solidão no exílio, ao conceito de identidade; à relevância da arte como reflexão histórica e política e a pertinência do acto de recordar e partilhar existências esquecidas.

Uma união forjada em aceitação física, espiritual e melódica; o duo desperta a sua relação em tempos remotos, com Tomona pressionado a viajar à procura de um destino significativo que justifique a sua condição e Inu-Oh a esconder-se atrás de uma máscara e a viver como um cão, incentivado pela sua família. Aliás, Inu-Oh, o nome que esta personagem escolhe adotar, significa O Rei dos Cães. O conceito simbólico de nomes como identidade domina esta fábula. Tomona testemunha alterações no seu nome, desde uma criança com os seus pais, até à sua comunidade de monges budistas e finalmente como artista de uma banda – libertando o seu corpo simultaneamente. As letras Kanji de Inu-Oh brilham e ocupam as mentes, ouvidos e bocas da população. Os contos distribuídos nos seus concertos são erguidos de espíritos à procura de paz, enterrados pelo seu país num túmulo oceânico de obliteração na consciência coletiva; manchados com sangue e a ignorância da corte imperial. Sem Nome. São as suas histórias suprimidas que esta banda espalha nas suas canções; que remediam as suas maldições metafóricas e físicas; que Masaaki Yuasa pretende homenagear. 

Neste sentido, Inu-Oh é um harmonioso tributo às histórias enterradas pelo passado e uma ode à arte como uma balada política; é uma obra aberta a todas as ideias de Yuasa, particularmente a sua afeição em quebrar normas, honrar criatividade e criar uma ponte entre tradição e modernidade. A existência desta personagem titular permanece um mistério, o seu nome perdura pela eternidade como um símbolo necessário a preservar. Uma recordação que apesar de sentirmos que conhecemos o mundo; existe muito mais que desconhecemos na sua história. Existem sempre contos por cantar.

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