Ilusões Perdidas (Illusions Perdues – 2022)

de Pedro Ginja

Existe uma altura em Ilusões Perdidas em que Etienne(Vincent Lacoste), o editor chefe de Lucien de Rubempré (Benjamin Voisin), personagem principal, afirma que é possível falar mal de qualquer obra de arte. Lucien nega que tal seja possível numa obra-prima ou maior de um grande artista. Etienne não hesita e facilmente prova a Lucien como está enganado e nós, juntamente com Lucien, não temos outra hipótese senão aceitar e rendermo-nos à cruel evidência de que nada está a salvo ou é sagrado. Muito menos a arte (cultura) com 0,25% do orçamento total, no nosso país – “SHOTS FIRED”.

Ilusões Perdidas ou Illusions Perdues (no seu título original), realizado por Xavier Giannoli, acompanha a história de Lucien de Rubempré, um jovem poeta desconhecido da província – Angoulême para ser mais preciso – onde abandona o seu trabalho servil e vai em busca do sonho de criar arte na boémia Paris do Séc. XIX. Adaptado do célebre e aclamado romance de Honoré de Balzac (com o mesmo nome), e para muitos considerado a sua obra-prima, foi publicado em 3 volumes entre 1836 e 1843 e faz parte da Comédia Humana – título pelo qual o autor decidiu chamar ao conjunto da sua obra.

E é mesmo isto que temos do filme, a cruel comédia humana que é a vida e que sintetiza perfeitamente aquela altura na vida em que as ilusões do que julgávamos verdade são postas a nu pelo que realmente são. É um filme duro e não aconselhado aos sensíveis de coração, ao retratar uma das épocas mais voláteis e injustas da vida artística parisiense em que o talento é secundário em relação ao dinheiro e ao tráfico de influências. Todos são carrascos e vítimas, ao mesmo tempo, na “selva” da crítica artística de arte de uma Paris livre, após o fim da monarquia, mas ainda presa ao fascínio da nobreza de sangue e à elegância da classe dominante da sociedade. É sempre esse, e não a arte, o objetivo principal de Lucien, o de ser reconhecido como “igual” pelo seu primeiro amor Louise de Bargeton (Cécile de France). Misto plebeu, pelo pai – de nome Chardon – e misto nobre, pela mãe – de nome de Rubempré – tem os dois sangues, azul e vermelho, mas não faz parte de ninguém. É cidade e é campo mas não faz parte de nenhum lugar, e é por essa razão que é parte do espectador, porque quem será que nunca se sentiu assim?

Tudo isto, sempre, no olhar de Benjamin Voisin e no vigor com que defende as suas ideias e o seu Lucien de Rubempré, mesmo quando o caminho é obviamente errado. Gravitam, à volta dele, a Louise de Bargeton perdida no mundo seu de direito; a Marquise d’Espard (Jeanne Balibar) detentora da verdade absoluta e genial no falar com o olhar; o Barão de Châtelet (André Marcon) contido mas maquiavélico; Nathan d’Anastazio (Xavier Dolan) prestável mas descrente da realidade em sua volta; Dauriat (Gérard Depardieu) engraçado mas cruel em igual medida; e Coralie (Salomé Dewaels) inocente e trágica na sua devoção. Muitos outros “satélites”, além destes, gravitam em volta do personagem principal, todos marcados por um destino do qual nenhum consegue escapar.

A sumptuosidade e atenção ao detalhe dos cenários, guarda-roupa e da vida parisiense do Séc. XIX transportam-nos ainda mais, se tal for possível, para este mundo decadente e em constante mutação tornado real pela realização de Xavier Giannoli e pela fotografia de Christophe Beaucarne. E o maior elogio seria dizer que, com a naturalidade tocante com que retrata todos os pormenores da vida francesa do Séc. XIX, consegue reencarnar em imagem as palavras de Honoré de Balzac.

Abençoados por um início de ano de grande qualidade nas estreias de cinema por terras lusas, Ilusões Perdidas passará, provavelmente, despercebido ao público geral mas será sem dúvida um “crime” perder a oportunidade de ver Balzac e a sua Paris do Séc. XIX retratada a três dimensões no cinema.

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