A primeira representação portuguesa depois de 95 edições dos Óscares da Academia, Ice Merchants, a terceira curta-metragem de João Gonzalez ganhou imediatamente um lugar especial na História do cinema luso. E isto é bonito. No entanto, mais bonito que o que representa, é mesmo o filme aqui criado pelo portuense, que numa casa presa por cordas no precipício de uma montanha, coloca um pai e o seu pequeno filho que, todas as manhãs, descem das alturas de paraquedas para vender gelo na aldeia no sopé da elevação.
Há todo um mundo criado em Ice Merchants que vai bem além da própria animação. A qualidade da sonoplastia dá ao ranger de cada tábua de madeira sobre o vento gelado das alturas, uma porta de entrada para a beleza da pequena história escrita por Gonzalez sobre saudade e paternidade. No repetir das descidas da montanha, no partir do gelo congelado num recipiente de madeira, no voo a pique em direção ao solo, no abraço em plena queda e nos chapéus que largam sempre pelo caminho, Ice Merchants revela uma rotina incessante com o sabor a ausência de um terceiro elemento deste laço familiar, uma ritualização que permanece apesar daqueles que já não estão.
Num filme sem diálogo, a música, composta pelo próprio realizador, segue de mãos dadas com o uso belíssimo de cores que fazem aquilo que diálogo nenhum podia fazer pela curta-metragem que nasceu de um sonho sonhado dois anos antes de Ice Merchants ver a luz do dia. A beleza da animação é mesmo essa, a criação de um mundo onde o seu arquiteto dita as regras e dita a linguagem vigente e Gonzalez usa toda uma palete de texturas e sons para dar vida a um mundo que nunca precisou de uma palavra.
Encontramos alguns elos e pontos comuns com os seus The Voyager (2017) e Nestor (2019), principalmente quando, além da animação, vemos as nossas personagens presas no espaço físico, sejam eles um apartamento, uma ilha ou uma casa na montanha, mas aquilo que em Ice Merchants lhes acrescenta é uma carga emocional que, embora não totalmente ausente, nomeadamente no seu primeiro filme, se sente libertadora e catártica para os seus habitantes. Ganha-se espaço para transformar esta primeira ida de Portugal aos Óscares uma viagem que poderá trazer, no percurso de volta, mais peso do que aquele que aterrou inicialmente em Los Angeles.
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[…] Ice Merchants | João Gonzalez […]
[…] Ice Merchants, do realizador nacional João Gonzalez, triunfou com cinco galardões, incluindo o Prémio SPA | Vasco Granja e o Prémio do Público, na Competição Portuguesa. No ano com mais filmes nacionais em competição no festival, “A relação muito forte entre um pai e um filho num universo frágil e perigoso, onde tudo se pode quebrar, servido por uma animação e um grafismo que nos restitui essa sensação de vertigem” foi o argumento que justificou a escolha do júri composto por Florence Miailhe, Les Mills e Pandora da Cunha Telles. Além do galardão principal, nesta categoria, o painel de jurados concedeu a Menção Honrosa a Ana Morphose, de João Rodrigues, “uma ode aos livros e ao mundo imaginário a que eles nos convidam”. […]
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[…] animado conhecido do país, O Pesadelo de António Maria (1923) e agora passado todo esse tempo Ice Merchants (2022), do realizador João Gonzalez, é nomeado para o Óscar de melhor curta-metragem de […]