I Saw the TV Glow (2024)

de João Iria

Um hino ao brilho da televisão, ao oceano de nostalgia cintilante que apodera-se das nossas mentes inocentes e transporta os nossos corpos para uma maré de emoções instáveis, deitados nas ondas e adormecidos na corrente, permitindo que esta defina o nosso destino. O som de estática embala as vozes da nossa cabeça, paralisando temporariamente as palavras infiltradas por este mundo distante do ecrã, reinado por adultos que ditam uma absurda normalidade, fundada na raiva e no medo. É cruel, estranho e brutalmente solitário existir num universo que restringe os nossos movimentos e a procura pela nossa felicidade e identidade. Ditados e expressões aleatórias sobre coragem e força ocupam as paredes da nossa educação, estabelecendo uma carpete vermelha para uma vida vazia, a emular os nossos desconhecidos vizinhos. Está connosco desde o nosso nascimento; uma programação automática ignorante dos desejos ou da vontade humana individual. O refúgio desta sensação infernal, avistado numa diminuta tela com uma imaginação extensa. Uma luz hipnotizante, capaz de fornecer o escapismo essencial para sobreviver neste árido cosmos emocional. O paraíso dentro do brilho da televisão. Até ser apagada.

Jane Schoenbrun explora na sua segunda longa-metragem, I Saw the TV Glow, uma história ferventemente poderosa sobre a relação especial que floresce entre dois jovens, Owen (Justice Smith) e Maddy (Brigette Lundy-Paine), através da sua paixão pela bizarra série sobrenatural, The Pink Opaque, uma narrativa com um estilo reminiscente de Buffy the Vampire Slayer (1997-2003) e Are You Afraid of the Dark? (1990-2000) que segue duas adolescentes, cuja ligação ultrapassa o físico, na sua batalha contra “monstros da semana” enviados pelo seu nemesis, Mr. Melancholy, uma figura lunar que pretende enviar as duas jovens para o Reino da Meia-Noite, enterradas eternamente. Os seus visuais sinistros e místicos, com efeitos práticos impressionantes, e as suas ideias contextuais fascinantes são naturalmente apelativos, suficiente para suscitar memórias da nossa infância, quando similar obsessão determinava a nossa ligação com a televisão. Quando uma série descoberta em horários nocturnos assemelhava-se a um segredo.

A curiosidade inicial de Owen expande para uma inquietante fixação que compensa um ambiente caseiro restringido, com um pai silenciosamente abusivo, mantido maioritariamente em sombras ou distante do frame, e uma mãe doente, lentamente a desvanecer. Para Maddy, The Pink Opaque é mais real do que a realidade. As suas acentuadas lágrimas escorrem pelo seu rosto durante o visionamento secreto de um episódio, após uma assustadora discussão com o seu pai, escondido sempre atrás de uma porta. Como um espelho frágil, ficção fragmenta a realidade, despedaçada pelas mãos destes protagonistas incapazes de distinguir os vestígios destes dois universos. Uma separação marcada pela sua banda sonora extraordinária, que preenche os balões de pensamento das suas personagens principais e pontua as suas transições entre a ebulição e a implosão, e marcada pela sua direção de fotografia que realça o acto da transformação entre luzes e reflexos: os corpos de Maddy e Owen aprisionados numa iluminação estática avistada no vazio de supermercados ou durante uma celebração de aniversário e libertados no broadcast da sua série favorita quando os seus rostos percorrem o cosmos.

O argumento de Schoenbrun está desinteressado numa leitura racional do seu próprio mundo, sendo estimulado pela metáfora e priorizando uma representação honesta da experiência sentimental dos seus seres. A sua magia funciona como uma onda electromagnética, comunicando numa linguagem invulgar para uma audiência genérica mas completamente cristalina para o seu público particular, ainda assim, afectando ambas as vertentes com semelhante impacto na sua hipnotizante explosão colorida. As performances de Smith e Lundy-Paine assistem naturalmente, com uma íntima veemência inesquecível no clarão dos seus olhares, estes espectadores ignorantes do seu conceito central numa jornada misteriosa alegórica até ao seu estrépito momento final, impotentes perante a sua profundidade dramática. Independentemente da pessoa sentada na sala de cinema, no sofá da sua sala de estar ou deitada na sua cama, a sua conclusão devastadora arranca-nos o coração e permite-nos continuar a viver para compreendermos o sofrimento de existir sem um batimento cardíaco.

Jane Schoenbrun carrega uma voz única e sublime como artista, capturando na sua visão uma nova era cinemática definitiva para uma geração perdida no ruído da televisão, da internet ou dos seus telemóveis, sondando nas suas narrativas as conexões entre a juventude com os seus respectivos ecrãs. Olhares encaminhados em túneis formados por sonhos, memórias e entretenimento, desvendando a sua verdade nos pixels brilhantes. Esta é uma história sobre a experiência de disforia de género e o celestial e destrutivo apelo do escapismo para a comunidade transgénero. Maddy e Owen encontram-se na televisão que funciona simultaneamente como um portal para as suas respectivas identidades como um sedativo para permanecerem nesta fila societária para um futuro pré-denominado.

O horror de I Saw the TV Glow é sufocante, circulando a nossa epiderme vagarosamente e asfixiando-nos com uma suavidade característica inicial que nem sentimos o seu toque na nossa pele até os olhos incharem, o ar escapar e perdermos consciência da nossa própria realidade. Os adultos, contrariamente aos inimigos televisivos, são colocados numa posição de figurantes nas rotinas destas personagens, sobressaindo como os verdadeiros monstros que compõem esta atmosfera instável para a dupla. Contudo, os danos sofridos ocupam o protagonismo nas suas viagens pessoais, visíveis nas suas vozes delicadas e vulneráveis. O som de Owen a desaparecer lentamente enquanto a sua respiração ofegante domina o seu vocabulário, demonstrando um esforço além do normal para permanecer afixado neste chão. As suas palavras morrem antes sequer de serem proferidas. Apesar deste estrangulamento simbólico, Schoenbrun recorda que “There is Still Time”, que mesmo sendo o nosso principal assassino, enquanto sentirmos o seu impacto, a sua duração e os seus sinais, conseguimos continuar à procura da nossa verdade. There is still time para aceitar que somos dignos de felicidade.

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