Hundreds of Beavers (2024)

de Lara Santos

Hundreds of Beavers é um filme diferente de qualquer outro da atualidade. Em pleno século XXI, conseguiu misturar aspetos da era moderna e digital e da era clássica do cinema, com uma clara inspiração nas comédias slapstick dos anos 20 e 30, resultando numa obra que transborda criatividade e originalidade (além de ser o único filme com centenas, possivelmente milhares, de castores em tela).

A premissa do filme é simples e complexa ao mesmo tempo: no século XIX, situado numa surreal e nevosa paisagem de inverno no norte da América, Jean Kayak (Ryland Tews), um bêbedo vendedor de Applejack, vê a sua horta e tanques de álcool completamente destruídos por castores. Nisto, ele embarca numa aventura, não só na luta pela sua sobrevivência no meio deste cenário gelado, mas também na luta contra centenas e centenas de castores, enquanto tenta ganhar o coração de uma peleteira (Olivia Graves), filha do comerciante mal humorado da floresta (Doug Mancheski).

O filme é quase uma mixórdia de géneros: inicialmente parece apenas uma comédia exagerada, mas, talvez seja um slapstick de terror dramático, ou então um drama silencioso expressionista. O que quer que seja, é engraçado e divertido e resulta perfeitamente com a estética da história e a dualidade entre o cinema do presente e do passado. Apesar do seu diálogo praticamente inexistente e edição inteiramente em preto e branco, a produção apoia-se em diversos after effects, telas verdes e algum CGI. É, deveras, uma ode ao cinema mudo, com inspirações claras em filmes de Charlie Chaplin e Buster Keaton, muito reminiscente ao desenho animado Looney Tunes, mas com as mecânicas de um filme moderno, revelando-se como uma obra intemporal, que deixa a sua marca como uma importante parte da história do cinema da comédia.

Além do aspeto cómico, é ainda de certa forma satisfatório ver Jean a progredir nas suas habilidades a caçar animais e vê-lo a resolver todo o tipo de puzzles e obstáculos com que se depara. Nesta perspetiva, Hundreds of Beavers é muito reminiscente a um videojogo, não só pela estrutura narrativa no geral, mas considerando, também, aspetos como os efeitos visuais e sonoros usados, o mapa que Jean leva consigo para se guiar e a banca do comerciante com as ferramentas e armas que vende. Todas as armadilhas e engenhocas construídas pela personagem principal contribuem de igual modo para esta estética, o que acaba por dar uma sensação de recompensa à audiência e alguma empatia por Jean enquanto tenta alcançar o seu objetivo.

Hundreds of Beavers usa e abusa do absurdismo, situado num local que nega completamente as leis da física e da natureza, misturando seres humanos com desenhos animados. A maioria dos animais no filme são clara e propositadamente homens em fatos, o que traz uma sensação quase uncanny. O filme cria ainda cenários e situações específicas, com a ajuda de after effects e distorção de áudio, que parecem retirados de um filme cómico de terror bizarro, como a peleteira a mostrar a Jean, num dos seus pequenos encontros ao pé da banca do pai, como prepara as peles de um castor, sem piedade.

Em termos imagéticos, o filme não tem uma única cena que não seja visualmente apelativa. O estilo a preto e branco combina muito bem com o ambiente nevoso e frio do cenário, fazendo com que, durante o dia, as personagens se destaquem nitidamente no meio do tom cristalino e, pela noite, se realce mais certas partes como o brilho de uma fogueira acesa ou os olhos esbugalhados de um lobo escondido nas árvores. Hundreds of Beavers é um claro exemplo de como um micro orçamento é suficiente para criar um filme bonito quando a dedicação é muita. A própria produção por detrás do filme, na construção dos mecanismos usados e a coreografar cenas de escala imensa e elaborada, aliada à orquestração de cenários com centenas de castores, é prova disso.

Contudo, ainda que, de certa forma, faça sentido tirar algum tempo para formular o desenrolar da história da maneira como está feito, especialmente pelas semelhanças a um videojogo, Hundreds of Beavers consegue ser demasiado extenso. A arte e o cuidado por detrás da obra são admiráveis, no entanto, o tempo de filme poderia ter sido mais condensado, principalmente o primeiro terço que consegue ser repetitivo em muitos aspetos. É um facto que há uma certa repetição e padrão necessários para o filme fazer mais sentido, de modo a enfatizar a progressão de Jean enquanto personagem e na sua passagem de um mero vendedor de uma bebida alcoólica para um forte caçador de castores, porém, no início torna-se cansativo e redundante.

No final das contas, Hundreds of Beavers é um filme deliciosamente nostálgico que remete para os clássicos, mas com um toque contemporâneo, que se aproveita da tecnologia moderna para criar uma história satisfatória e cómica, misturando live-action com animação de uma forma harmoniosa, criando, assim, a sua própria identidade.

3.5/5
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