Honk for Jesus. Save Your Soul. (2022)

de Francisca Tinoco

Para começar as celebrações da Páscoa com estilo, que tal uma boa dose de sátira religiosa? É exatamente isso que a realizadora nigeriana americana Adamma Ebo propõe com Honk for Jesus. Save Your Soul., uma longa baseada numa curta previamente realizada e produzida por Ebo que expõe a ironia e cariz altamente teatral das megaigrejas cristãs, ao mesmo tempo que perspetiva e examina o lugar da mulher nas suas estruturas.  

O filme conta com uma dupla de luxo a liderar o elenco — Regina Hall e Sterling K. Brown, conhecidos pelas suas prestações em filmes como Scary Movie (2000) e American Fiction (2023), ou séries como Nine Perfect Strangers (2021–) e This Is Us (2016–2022), respetivamente. Brown interpreta Lee-Curtis Childs, o pastor da igreja Batista do Sul, Wander to Greater Paths (WTGP), envolto num escândalo sexual cujos contornos se esclarecem à medida que o filme desenvolve. Nas palavras do próprio argumento, é “a cabeça e a cara” do filme e do seu enredo, mas é a personagem de Hall, a sua primeira dama e esposa Trinitie Childs, que proporciona o “pescoço e a espinha” e, já agora, uma performance surpreendentemente profunda.

Numa tentativa de recuperar os congregantes que haviam trocado a WTGP por outra igreja da zona e limpar a imagem de Lee-Curtis, os Childs abrem as portas do seu santuário aparatoso à equipa de um documentário, transportando o filme para o subgénero mais querido da comédia — o mockumentary. Mas Ebo não faz uso deste dispositivo narrativo só pelo seu potencial cómico, potenciado pelos olhares diretos para a câmara e momentos de quebra da fourth wall que divide o universo da história e o seu público, popularizados na cultura pop pela sitcom americana The Office (2005-2013), por exemplo. Sim, o formato mockumentary não deixa de ser solo fértil para gargalhadas, mas ganha outra justificação para o seu uso, neste caso, ao assumir um papel observacional e de fly-on-the-wall que permite evidenciar os limites da fachada que os Childs tentam vender à sua congregação.

Aliás, Honk for Jesus. vai um passo mais longe ao combinar os momentos mockumentary, que assumem um aspect ratio mais estreito e uma qualidade visual mais crua, com momentos cinemáticos, sugestivos do filme narrativo comum, filmados num aspect ratio mais amplo, com uma iluminação e um tratamento mais estilizados. Ainda assim, o diretor de fotografia Alan Gwizdowski consegue capturar ambos de modo a propiciar uma transição fluída e discreta entre eles. O espectador consegue perceber quais as situações em que os Childs sabem que estão a ser filmados e em que a câmara e, por associação, a equipa do documentário (que nunca vemos, com uma exceção significativa), constituem personagens do filme. Paralelamente, consegue, também, identificar, os momentos privados e que, apesar de estarem a ser filmados na nossa realidade, não o são na realidade das personagens do filme. Isto inclui cenas na casa dos Childs, como refeições ou relações sexuais, cenas nas pausas das filmagens do documentário ou, até, ângulos mais intimistas que procuram capturar emoções às quais o acesso está, por uma ou outra razão, vedado para a equipa do documentário.

A combinação promove um tom interessante e único no filme e, como referido, permite uma visão mais completa da farsa que o casal pretende vender, furando-a gradualmente. Tornam-se mais óbvias as ferramentas que cada um emprega quando assume a sua identidade pública, versus as tendências mais naturais que vêm ao de cima em ocasiões de maior intimidade. Claro está que, os momentos altos do filme, acontecem quando essa identidade pública penetra a esfera privada, e, vice-versa, quando essas tendências naturais se infiltram na imagem polida que estes experientes oradores e celebridades locais querem, a todo o custo, ostentar.

Esta dinâmica não podia ser mais clara do que na personagem de Trinitie. Hall é eximia na forma como encarna esta primeira dama cujo objetivo de vida se cinge quase completamente à elevação e apoio do seu marido. Enquanto Lee-Curtis se pode descontrolar e render a exuberâncias e caprichos, Trinitie deve manter uma frente tranquila que transmita o seu controlo total sobre a situação. Ou seja, tudo isto foi combinado conforme o plano, mesmo quando tal não podia estar mais longe da verdade. Quando expressa vontades próprias e opiniões dissidentes, é rapidamente rebaixada pelo marido, e moldada à sua imagem (num paralelo evidente com a Palavra da Bíblia). No entanto, está longe de ser uma personagem submissa. A sua inteligência é evidente e enquadrada como sendo vastamente superior à do pastor. Este, por seu lado, contribui para a missão dos dois com o seu carisma e capacidade de oratória — ambas cuidadosamente coreografadas pela esposa.

Trinitie é uma mulher crente, devota à instituição do casamento, e disposta a fazer seja o que for para lhe dar continuidade e longevidade. Claro que a riqueza desmedida gerada pela igreja e que permite ao casal ter uma pomposa mansão, bem como automóveis e roupas topo de gama, também a motiva quando a conjuntura se torna particularmente periclitante. Fica do lado do seu marido aquando do escândalo sexual, consente com a ideia do documentário, e com outros métodos de relações-públicas e controlo de crise menos dignos, tal como a cena que dá nome ao filme — Trinitie, na berma da estrada, a segurar um cartaz com a mensagem “Honk for Jesus”, enquanto Lee-Curtis promove a reabertura da igreja a acontecer no domingo de Páscoa com a ajuda dum megafone estridente.

A posição de Trinitie é simbólica do papel que a mulher ocupa na igreja cristã e igualada à luta de Jesus, que nunca deixa de sorrir, mesmo quando sofre/chora. Mas qualquer crença pode ser quebrada e, aos poucos, vemos sentimentos de dúvida e cansaço emergir na personagem, enquanto Lee-Curtis, um verdadeiro Diabo Veste Prada, com os seus fatos haute couture de todas as cores do arco-íris, continua a ceder aos seus instintos. Apesar de o pastor ser, numa perspetiva limitada, o vilão da história, Honk for Jesus. consegue fazer-nos empatizar com ele, muito graças à atuação de Brown, um dos grandes atores da sua geração, que traz vislumbres de humanidade à personagem extravagante.

Posto isto, o filme deixa, infelizmente, a desejar no plano da narrativa, mesmo trazendo técnicas inovadoras para a contar. Os conceitos são, à partida, dignos de atenção e cheios de potencial, mas o filme não consegue levá-los até à meta. O filme termina antes de nos proporcionar uma conclusão satisfatória e sofre pela falta de desenvolvimento e profundidade, ficando-se pelas ideias óbvias que a maioria já tem destas organizações religiosas e dos seus líderes. Mas Honk for Jesus. continua a ser uma comédia pertinente, com garras e dentes, elevada por atuações muito competentes de dois grandes atores americanos. Sente-se como um filme incompleto, ainda que cheio de boas ideias e boas intenções.

2.5/5
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