Heretic (2024)

de Antony Sousa

Tudo é uma cópia de uma cópia de uma cópia”, escreveu Chuck Palahniuk no livro Fight Club de 1996, palavras que se tornaram imortais através do cinema e através da voz de Edward Norton. Heretic toca nesse ponto, ligando-o a vários outros pontos, de maneira a formar um labirinto com saída, mas uma saída que não segue o trilho óbvio, paradoxalmente sendo mais original do que as cópias das quais se terá inspirado.

Duas jovens missionárias no seu caminho de fé batem à porta de um homem difícil de decifrar. Enquanto tentam aproximar Mr. Reed (Hugh Grant) da crença que as une, são desafiadas a participar num jogo que não dominam e que embate de frente com tudo o que acreditam. O termo thought provoking foi criado para obras artísticas como Heretic, que não serão consensuais, mas ousam mais do que a norma.

A história não está isenta de certas conveniências para que prossiga exactamente na direcção e para a finalidade imaginada pela dupla de realizadores e argumentistas Scott Beck e Bryan Woods (criadores deA Quiet Place[2018]), contudo os seus clichês não se sobrepõem aos numerosos estímulos mentais espalhados por toda a trama. Somos convidados a dar uma trinca numa tarte de mirtilo e a assistir a um puzzle ser montado à nossa frente sem termos bem ideia de qual imagem iremos ver no fim.

Cada peça é meticulosamente colocada por Mr. Reed, com o auxílio involuntário da Irmã Barnes (Sophie Thatcher) e da Irmã Paxton (Chloe East), implementando-nos ideais divergentes sobre religião, controlo e livre arbítrio, ao mesmo tempo que nos converge lentamente para a verdade de cada personagem. Sendo que o “lentamente” aqui é usado para adocicar a ementa, para nos alimentar enquanto nos mantém com apetite para conhecer os novos pratos que nos serão servidos, não para identificar qualquer lentidão no desenvolvimento dos acontecimentos. Até porque uma das mais-valias do filme é mesmo o poder contar-se pelos dedos de uma mão as cenas que poderiam ser retiradas sem prejuízo do resultado final. O ritmo, os tempos para cada mistério ser desvendado foram cronometrados com sapiência.

Por falar em mais-valia, mais valia Hugh Grant ter apostado na sua faceta sinistra mais cedo. O actor britânico fez-se notar em filmes como Nothing Hill (1999), Love Actually (2003) e Bridget Jones’s Diary (2001), mas consolida-se agora como actor versátil e maduro com a sua “Era de vilão”, como provam Paddington 2 (2017), Dungeons and Dragons (2023) ou até com o seu Oompa Loompa em Wonka (2023). Mr. Reed é o pináculo desta expansão de possibilidades que Hugh Grant criou para si. A personagem que interpreta joga em casa, sabe disso, faz-se valer disso e está habituado a isso, e Mr. Grant monopoliza as cenas com mestria, bem em sintonia com o que o papel pede.

Em várias circunstâncias diferentes ao longo do filme nunca deixamos de ver Reed, mesmo sendo um homem que esconde segredos e intenções, é palpável desde o princípio que algures entre a sua cordialidade e curiosidade existe uma sombra à espera de sorrir. A pertinência e execução imaculadas dos momentos em que essa sombra vem ao de cima para depois voltar a camuflar-se com o escuro, são evidências tanto do extraordinário trabalho de quem está em frente à câmera, como de quem está atrás delas, como do texto. Sophia Thatcher e Chloe East formam uma dupla que se complementa, e interpretam personagens que contrariam a teoria de que neste género de terror as vítimas tomam sempre decisões questionáveis e pouco perspicazes.

É possível que o twist que deixa toda a realidade a nú seja visto como rebuscado, porém o argumento consegue acumular diversas camadas e desse modo dar-nos a hipótese de encararmos tudo o que foi dito de diferentes prismas, até podendo abrir caminho para teorias mais alternativas que expliquem o último plano do filme. O que é certo é que Heretic não foi realizado para ser indiferente, existe para provocar a conversa, discussão, sem descurar do entretenimento e a sua dose de ficção saída do fundo do baú. Mas acima de tudo, ainda bem que existe.

4/5
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