Hazbin Hotel – 1ª Temporada (2019-)

de João Iria

Nas profundezas das abandonadas trevas, através das cálidas chamas e do pestilento e fétido ardor de cadáveres em decomposição consumidos por uma sociedade de canibais adoráveis com um acolhedor sorriso e uma oferenda de dedos humanos como entradas encontramos uma encantadora voz a ecoar por este demoníaco érebo; é um som profundamente esperançoso que opõe-se contra o seu palco maligno; é um número musical encenado por uma personagem cujo design alude a uma princesa Disney, exceto que esta é a princesa do Inferno, Charlie Morningstar (Erika Henningsen) – é a mesma coisa, vamos ser sinceros –, a filha de Lucifer, uma entusiástica criatura com “daddy issues” que decide combater contra a sobrepopulação do Inferno e a sangrenta purga anual provocada pelos anjos do Céu, ao criar o Hazbin Hotel, um espaço dedicado para os pecadores mudarem a sua natureza e ascenderem para um destino celestial. De acordo com a futura rainha, todos os demónios são capazes de reabilitação, apenas precisam de uma oportunidade. Este hotel é a sua oportunidade. Um objetivo que nem os seus hóspedes parecem acreditar inicialmente.

Assistida pelo intensamente temido e poderoso demónio da Radio, Alastor (Amir Talai), que oculta os seus tenebrosos interesses pessoais nesta decisão, e acompanhada pela sua dedicada namorada e agressiva manager do Hotel, Vaggie (Stephanie Beatriz), Charlie abre as portas para diversos empregados, incluindo as criaturas acorrentadas a Alastor, como o alcóolico gato bartender, Husk (Keith David), e a masoquista ciclope empregada de limpeza, Niffty (Kimiko Glenn), e para hóspedes convidados, como o pornstar Angel Dust (Blake Roman) – uma espécie de aranha humanoide ninfomaníaca? –; neste momento é necessário apontar a natureza relativamente fetichista desta obra, é simplesmente impossível de escapar do seu ambiente excentricamente sexual e evidentemente furry, um elemento que pode suscitar algum desconforto na audiência. Pessoalmente, nunca incomodou-me pois considero a arte audiovisual, cinemática ou episódica, como inevitavelmente fetichista (seja inocente ou lasciva). Hitchcock era fascinado por voyeurismo e loiras, Vivienne Medrano (criadora desta série) claramente sente-se atraída por esta subcultura. Desejos humanos individuais fomentam a criatividade pessoal, logo, retirar este componente de Hazbin Hotel implicaria a destruição da sua identidade. Ainda que algumas pessoas possam sentir-se constrangidas com as filmagens de um gangbang furry para um filme pornográfico, não sei que mais dizer senão: cresçam e mantenham as mentes abertas perante toda a arte audiovisual.

As incríveis personagens de Hazbin Hotel são dignas dessa receptividade, aliás um dos seus pontos narrativos principais é precisamente a ideia de aceitação pessoal, a consciência que ser um falhado não impede o crescimento individual ou de atingir uma felicidade inédita; nunca julgar um demónio pelos seus salientes cornos ou um anjo pelas suas emplumadas asas, refletido num Adão (Alex Brightman) douchebag com a atitude narcisista de um quarterback num teen movie ou na serpente hilariantemente patética, todavia completamente amorosa, Sir Pentious (Alex Brightman) – uma inevitável personagem favorita desta temporada –, “Now, if you’ll excuse me, I’m off to NOT have sexual intercourse before marriage!”. Estas figuras charmosas destacam-se através de um elenco de performances vocais extraordinárias, genuinamente das melhores que avistei numa série de animação, comprometido a habitar plenamente as suas personagens e encontrando sempre novas formas de caracterizar e expressar os seus diálogos – conseguimos sentir os atores a integrarem o seu corpo nas suas interpretações, raios, Erika Henningsen é uma brilhante protagonista –, é um talento manifestado simultaneamente nos grandiosos números musicais que invadiram o meu spotify on repeat durante as últimas semanas, como a batalha entre o short king do Inferno, Lucifer, e Alastor, uma canção que recorda Friend Like Me de Aladdin (1992) num curioso híbrido de géneros que incluem electroswing e jazzpop, ou como a minha favorita, Loser, Baby, com uma elegância cativante típica do melhor da Broadway. As criações de Sam Haft e Andrew Underberg oferecem uma diversidade única na sua coleção pois cada canção atravessa um registo musical distinto de acordo com a personalidade da personagem no palco – uma excelente ideia que, infelizmente, resulta numa inconsistência de qualidade: os altos são extraordinários, os baixos são completamente esquecíveis e aborrecidos.

Essa inconsistência é alastrada pelos episódios além da sua direção melodiosa, sendo que Hazbin Hotel é ocasionalmente atormentado por confusas decisões narrativas que afetam o seu impacto dramático, como um importante número musical que parece despertar uma espécie de revolta no Céu apenas para este plot point desaparecer praticamente da temporada no fim da canção juntamente com uma das suas personagens; um dos hóspedes neste hotel está envolvido em numerosos subenredos que também são basicamente apagados ou mantidos como fantasmas neste edifício. Demasiadas estradas são construídas isentas dos materiais necessários para iniciar as suas respectivas jornadas, servindo apenas como futuras atrações. Permanece uma sensação que o elenco secundário apenas existe nas suas cenas individuais, sendo irrelevantes no restante contexto deste mundo, ou que Medrano simplesmente estava demasiado concentrada em estabelecer peças para seguintes temporadas, invés de centrar-se nesta primeira história cuja conclusão sente-se excessivamente breve.

No entanto, nada danifica o seu divertido argumento wholesome; até os seus instantes negros nunca são arrastados por humor ofensivo ou shock value. Na verdade, apesar de ser uma série repleta de conteúdo sexual e violência, Vivienne Medrano demonstra desinteresse em adotar somente um estilo reminiscente de Family Guy (1999-), produzindo uma ponte entre essa criação de Seth MacFarlane e Gravity Falls (2012-2016). O excesso de vulgaridade ocorre com a inocência de uma criança que acabou de aprender asneiras e persiste em repetir pela piada, por vezes com consequências cansativas. É imaturo mas nunca infantil pois é conjugado com o espírito de clássicos cartoons, usufruindo do seu meio audiovisual para criar gargalhadas nas reações, nos sightgags rápidos e na fisicalidade absurda deste universo. Para não mencionar que Medrano e a sua equipa conseguem elaborar motivação dramática e narrativa no seu próprio excesso e obscenidade com um dos seus melhores episódios acerca da vida de Angel Dust, fora do hotel.

Charmoso e carismático o suficiente para compensar os seus percalços, é o seu amor pelas suas personagens que destaca Hazbin Hotel dos seus contemporâneos de animação para adultos – ainda mais fantástico notar que Medrano iniciou a sua carreira online, publicando o episódio piloto desta série no Youtube –. Uma paixão refletida na sua maravilhosa animação, onde todas as personagens exibem energia e vida além do seu enquadramento, descrevendo as suas personalidades perfeitamente mesmo despojadas de som. Mas nós queremos ouvir, porque queremos sentir as músicas e as extraordinárias performances vocais; porque queremos genuinamente conviver com estas personagens. Porque como qualquer estadia num hotel, é a companhia que nos faz regressar.

3.5/5
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