Handling the Undead (2024)

de João Iria

A morte é silenciosa. Após o desgosto, os rugidos de aflição, as lágrimas partilhadas, as palavras nunca pronunciadas e o essencial conforto de rostos conhecidos, tudo o que resta é silêncio. Nesta quietude enfrentamos a nossa fragilidade e confrontamos o vácuo do nosso universo numa cama desfeita, numa cadeira vaga, numa sala de estar inerte, e na estática dos ecrãs. Todos os objectos são marcados com o peso de um fantasma. A pessoa que ontem estava connosco, sentada ao nosso lado, a conversar no sofá, a relatar pequenas circunstâncias dos seus dias, simplesmente parou de existir. Desvaneceu um ser que atribuía entusiasmo, prazer, mágoa, raiva, felicidade e significado à nossa existência; perdemos um motivo para acordar mas mesmo assim os nossos olhos continuam abertos. É uma sensação devastadora capturada sublimemente nesta longa-metragem norueguesa, Handling the Undead (Håndtering av udøde).

A cineasta Thea Hvistendahl aprisiona-nos com as suas personagens no seu sofrimento, tristeza e frustração, e recusa-se a libertar-nos do seu frio vazio. A morte representada como uma eterna solidão para os vivos. Baseado no romance de John Ajvide Lindqvist, que colabora neste argumento com Hvistendahl, esta narrativa subverte o subgénero de horror zombie ao explorar um mundo onde os mortos renascem, todavia, os seus antigos companheiros, familiares, amigos e amantes, abrem as portas para o seu regresso, ignorando propositadamente a sua ameaça simbólica, aparência tenebrosa e os seus passos ilógicos. Ninguém foge ou percorre as ruas à procura de abrigo, armas ou informação. Procuram somente retomar o tempo perdido. Em Oslo, uma mulher, Anna (Renate Reinsve), reencontra o seu filho falecido a respirar. David (Anders Danielsen Lie) despede-se da sua esposa apenas para sentir repentinamente o seu delicado batimento cardíaco. Tora (Bente Børsum) recupera o amor da sua vida, enterrada nessa mesma madrugada. Durante a sua breve duração, Thea Hvistendahl revela estas três desconhecidas famílias a experienciar um evento que as une emocionalmente num único túmulo.

Espectadores com esperança de assistir um enredo tradicional podem desistir imediatamente desta obra audiovisual. A sua intenção é arrastar-nos para o universo dos seus protagonistas e habitarmos os seus corpos ocos até estes finalmente racharem, desmanchando-se em cinzas, e sermos cegados por uma luz exterior desinteressada na nossa protecção. É um ritmo intensamente vagaroso, insuportável para uma audiência entusiasmada pelo conceito de mortos-vivos a deliciarem-se com cérebros e sangue. Handling the Undead pretende esvair o nosso pulso no seu pacing compassado até pararmos completamente de pensar. Rasga a nossa pele e deixa-nos a esvaziar até atingirmos o estado psicológico das suas personagens. As imagens revelam ruas despovoadas; um ambiente pós-apocalíptico comum neste género que evoca, agora, memórias da quarentena. Oslo é um local morto antes sequer dos mortos acordarem. Os corredores dos hospitais prolongam-se e sentem-se intermináveis. A direção de fotografia de Pål Ulvik Rokseth coloca os protagonistas às escuras, a desvanecer suavemente no negrume das suas existências, a desaparecer à nossa frente. Praticamente destituído de diálogos, o silêncio torna-se a nossa única companhia pois estas famílias permanecem distantes do nosso alcance. Nunca conhecemos realmente estes indivíduos, propositadamente. Os seus respectivos passados, relações, objectivos são meros instrumentos nos cenários ou pensamentos privados, comunicados nas excelentes performances graciosas do seu elenco. A realizadora prioriza o valor de ligeiros timbres, salientando o design sonoro em talheres a raspar num prato, no eco de passos por um hospital, e no respirar enfraquecido de uma pessoa renascida. Na sua iluminação, nos seus planos gerais, passagens duradouras, espaços sem figurantes e através do seu impacto sonoro é estabelecido o vazio do luto.

Hvistendahl utiliza as convenções do género para explorar a nossa relação com a mortalidade, demonstrando esta finalidade como uma infeção psíquica contagiosa, onde os próprios sobreviventes param de existir, orientando-se mecanicamente nas suas rotinas, desprovidos de palavras, movimentando-se pelas suas habitações como criaturas sem direção, lentamente consumidos pela decadência. A humanidade como zombies não é um conceito exactamente original. Aliás, as críticas principais desta longa-metragem – a minha opinião está na minoria – lamentam a sua edição pesada, a sua conclusão súbita que provoca uma sensação anti-climática, e o seu profundo distanciamento sentimental do espectador. Para muitos, Handling the Undead oferece nada. Para mim, ofereceu-me o futuro. O seu horror reside nesta impressão mórbida: as nossas vastas distinções são interrompidas por um receio comum partilhado pela humanidade. Todos tememos observar aqueles que amamos a desaparecer em memórias. Viver é uma tragédia porque, indirectamente ou directamente, desde o nosso nascimento que estamos conectados à morte. Nada vai mudar esta realidade. Só resta o silêncio.

4/5
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