Hamilton é um musical da Broadway, da autoria de Lin-Manuel Miranda, que teve a sua primeira apresentação em 2015, porém, em 2020, a Disney+ decidiu criar uma polémicazita e meteu a comunidade cinéfila a debater se a obra que inserira no seu catálogo se categorizava como filme, ou apenas uma gravação de um espetáculo com um grande cheirinho a longa-metragem.
Desde os primórdios da revolução americana até ao nascimento daquilo que viria a tornar-se numa das maiores nações da história, Hamilton, conta a história de Alexander Hamilton (Lin-Manuel Miranda) desde os tempos em que não era nada mais do que um imigrante com dívidas, até se tornar detentor de um dos cargos mais poderosos do país, Secretário do Tesouro dos EUA.
A peça conta com vários momentos de brilhante euforia, muito através de Daveed Diggs que dá vida a La Fayette e a Thomas Jefferson que servem como alívio cómico, mas sem nunca perderem a seriedade que os personagens exigem. Há também momentos acolhedores, como no tema “Dear Theodosia”, onde Hamilton e Burr (Leslie Odom Jr.) declaram amor aos seus filhos, e momentos de partir o coração. Uma verdadeira montanha-russa de emoções.
É indescritível como Lin-Manuel Miranda consegue injetar um turbo de humanidade em personagens com tantas falhas. Pode argumentar-se que são precisamente essas falhas que os tornam humanos, mas a tarefa complica-se quando se tratam de sujeitos com um peso enorme na história americana.
A narrativa centra-se essencialmente em torno da rivalidade entre Alexander Hamilton e Aaron Burr. Na verdade, não é tanto sobre as pessoas em si, mas sobre duas formas diferentes de se percecionar a vida. Talvez dos maiores exemplos da expressão “os extremos tocam-se”, pois, apesar de mundividências tão drasticamente opostas, no fundo, é demasiado fácil traçar paralelismos entre as duas personalidades. De um lado, Hamilton, agarrado à ideia de viver a vida, tomar as rédeas e sempre com pressa de alcançar os seus objetivos. Por outro, Aaron Burr, mais meticuloso e calculista que espera sempre pelo momento certo para agir. Porém, ambos incrivelmente teimosos, com um orgulho capaz de derrubar montanhas e um sentido de dever para com a sua nação enorme.
É este conflito de mundividências que move a narrativa e isto é feito com uma mestria ímpar. O confronto, apesar de real, nunca é realmente tratado como tal pelo menos não na forma convencional, na medida que não existe uma visão que se sobressaia. Ambas as personagens têm razões bastante bem fundamentadas para tomarem as decisões que tomam e a peça em momento algum toma partidos. Quando muito o lado que toma é contra o exagero destes protagonistas que, cegados pelo ego, deixam escalar o conflito até a um ponto sem retorno.
Os números musicais são de outro mundo. Para além de serem músicas que podem facilmente esgueirar-se para qualquer playlist, são temas que servem a história e que ajudam a narrativa a avançar. Não só é relativamente fácil o espectador abstrair-se do facto de que o canto é a forma de falar, como é evidente que a força emocional que a história carrega não podia ser transportada de outra forma.
Outro ponto que esta história toca é aquilo a que chamamos legado. Afinal, qual a importância de plantar frutos que nunca iremos colher? Qual o interesse de proteger a memória de alguém que já cá não está? Por um lado, a ideia de vida eterna, mesmo que apenas na memória, é bastante apelativa. Não obstante, é fácil considerar uma manobra arriscada optar por uma solução que reside bastante em passar o julgamento daquilo que a nossa vida foi para outros e não para nós mesmos.
Hamilton é uma ode à humanidade. Uma obra que aborda o luto, ambição, cautela e trata de personagens tão cativantes nas suas falhas, que faz com que seja uma história que, apesar de ter protagonistas e antagonistas, não tem propriamente um herói nem um vilão. É a vida a acontecer perante os nossos olhos e uma reflexão sobre aquilo que podemos ou escolhemos ser.