“Pork and Cheese” é a designação dada aos portugueses pelos habitantes de Great Yarmouth, uma pequena cidade do leste do Reino Unido. Vivendo no século passado do boom do turismo proveniente da sua costa e das praias da região, acabou por entrar, na última década, numa espiral de decadência bem patente na obra de Marco Martins. Todos, no entanto, parecem estar “presos” a este local numa espécie de transe do qual nunca ninguém acorda. Os únicos imunes parecem ser os pássaros, que voam em bando pelos céus da cidade, abstraídos do que os, supostos, seres superiores fazem nos recantos escuros desta cidade.
Tânia (Beatriz Batarda), chamada de “Mãe” pelos outros portugueses, deambula pela cidade entre os dois mundos, o dos locais e dos portugueses, em busca de uma vida melhor. Mas que limites terão de ser quebrados para a atingir? É esse o cerne deste argumento, de Marco Martins e Ricardo Adolfo, baseado numa peça de teatro estreada em 2018 mas também num intenso trabalho de pesquisa junto da comunidade portuguesa em Great Yarmouth. E essa intensidade e dedicação passa para a história que agora chega às nossas salas.
A realidade é algo difícil de suportar durante todo este filme. O trabalho, principalmente sazonal, no tempo do natal e da Páscoa, nas fábricas de abate de perus é mostrado sem tabus. O chão deste matadouro é banhado a penas, sangue, vómito e merda, como nos relembram todos, e é metáfora para a vida destes trabalhadores, explorados até à exaustão com turnos capazes de testar o mais forte dos espectadores. O choque é real e difícil de suportar e leva-nos às lágrimas tal o sofrimento exposto, tanto animal como humano. Quem não aguenta é descartado como o sangue no final de um dia de trabalho. Fica o aviso para espectadores mais sensíveis.
Como rainha, e líder de todos estes imigrantes, reina Beatriz Batarda numa completa imersão no papel, em que serve de intermediário e onde quem chega a chama de “mãe”, carregado de promessas e ilusões de um sonho a cumprir. Tânia acredita estar a fazer o melhor e a defender os seus conterrâneos mas pulula entre alianças ténues – os esgares de desaprovação dos portugueses que se sentem enganados e os ingleses de Great Yarmouth sem respeito pelo seu trabalho ou dedicação. Sabe que está sozinha neste mundo de becos escuros, neons, hotéis degradados e visões destorcidas da realidade. Do pragmatismo inicial cai, ela também, na ilusão assente numa solidão imensa, completando a metamorfose, não apenas no descontrolo dos sentimentos, mas também fisicamente, nos trejeitos em crescendo e no aspecto cada vez mais cadavérico, como a implodir por dentro. Beatriz Batarda revela uma total entrega a esta Tânia, fruto de muito trabalho e um talento nato. E com a direção de Marco Martins parece transcender-se para um plano ainda mais alto. Romeu Runa, no papel de Raúl, partilha o mesmo caminho tortuoso, e o mesmo talento de Batarda, na criação de uma personagem igualmente memorável e que ficará connosco muito após o final do filme. Todo o elenco português, completado com Nuno Lopes e Rita Cabaço, mantem o nível alto. Kris Hitchen, no lado dos britânicos, exagera ligeiramente na vilania do seu papel mas o seu talento não passa despercebido.
Os heróis, no entanto, são os portugueses anónimos homenageados no filme. Marco Martins procura abrir os olhos de uma sociedade alheada dos problemas da imigração e ao desrespeito por quem só quer ganhar a vida para a sua família. E isto aplica-se não apenas a Great Yarmouth mas a todo o mundo, mesmo aqui neste rectângulo plantado à beira-mar. Tudo conspira para nos trazer este retrato duro da vida imigrante, com João Ribeiro no trabalho de fotografia sujo, decadente e em constante jogos de luzes e sombras nos exteriores, e luminoso, realista e preciso nos interiores do matadouro em que nada fica por mostrar. Realce, ainda, para o magnífico design e trabalho de som que nos transporta para onde não queremos ir e aparenta trazer os cheiros e o desconforto, ao extremo, de todos estes locais.
Seis anos depois da última aventura na ficção cinematográfica, Marco Martins regressa com este Great Yarmouth: Provisional Figures e não deixa pedra por virar neste “mundo de cão” dos imigrantes portugueses no Reino Unido. Beatriz Batarda e Romeu Runa, em igual medida, elevam o filme pela sua entrega abnegada ao serviço da história e das suas personagens mas é a realização inspirada de Marco Martins, na sua extrema dureza, que nos tira o chão e deixa marcas bem para além do fim da projecção. Como os pássaros, “voamos para longe”, mas nunca deixamos aquele chão de sangue e merda.
Ps: Ouvir “Promise Me” da Beverly Craven nunca mais vai ser o mesmo.
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