Miguel Gomes é um realizador difícil de categorizar e ainda mais de definir. Inicia-se como crítico de cinema, mas desde logo com os olhos postos na criação cinematográfica, que inicia em 1999 com a sua primeira curta-metragem Entretanto (1999). Os prémios começam a surgir em 2008 com o Globo de Ouro de Melhor Filme para Aquele Querido Mês de Agosto (2008) e o filme seguinte Tabu (2012), conquista dois prémios no festival de Berlim do mesmo ano. Seguiu-se o muito ambicioso As Mil e Uma Noites em 2015, um documentário de ficção em 3 volumes sobre o livro com o mesmo nome, muito elogiado na sua exibição em Cannes. Foi, no entanto, preciso esperar 9 anos para a consagração acontecer com o prémio de Melhor Realização por este Grand Tour no mesmo festival internacional.
Edward (Gonçalo Waddington) trabalha em Mandalay como funcionário público e desloca-se ao porto de Rangoon onde espera pelo regresso da sua noiva, Molly (Crista Alfaiate), após sete anos de ausência. Mesmo antes de o barco atracar, Edward abandona o cais e decide fugir do compromisso de casamento com Molly. Começa então uma odisseia de Edward em fuga, por todo o sudeste asiático, mas sempre com Molly no seu encalço.
Grand Tour pode ser considerado uma comédia romântica, ou talvez mesmo uma screwball comedy, reminiscente dos tempos de Cary Grant e Katherine Hepburn, mas em que o protagonista masculino é um cobarde com medo do compromisso, de nome Edward, e a protagonista feminina uma força da natureza com uma resiliência inabalável, de nome Molly. Deambulam ambos pelo sudeste asiático em romaria, no tempo e no espaço, levando o espectador à boleia como voyeur dos seus medos, traumas e dúvidas, mas também das suas paixões, certezas e convicções. Miguel Gomes fá-lo por capítulos, dedicando o primeiro ao ponto de vista de Edward e o segundo ao de Molly. Entre ambos, e a separar cada capítulo e país visitado na história, encontramos pequenos interlúdios que introduzem o terceiro protagonista da narrativa, o próprio realizador Miguel Gomes e o seu fascínio pela cultura do sudeste asiático. Desde imagens actuais de cidades modernas asiáticas, a teatros de sombras ou de marionetas, demonstrações de artes marciais ou apenas o “bailado” diário do cidadão comum a viver o seu dia-a-dia. Não está fisicamente no celuloide mas a sua essência permeia cada um destes mosaicos de vida.
O tempo e espaço adquirem uma qualidade etérea na narrativa, sendo impossível distinguir entre a realidade e a ficção, toda ela filmada em estúdio. Parece difícil de acreditar neste facto mas este é revelador do trabalho exímio de cenografia da dupla Luciano Cammerieri e Babi Targino, dirigidos por Brunella de Cola. A própria fotografia é imprescindível para manter este estado de imersão completa e de verossimilhança do ambiente. Quase sentimos na pele as picadas de insecto, o calor húmido insuportável, as pingas da chuva ou o ribombar dos trovões. Filmado quase exclusivamente a preto e branco, com algumas sequências coloridas, é um trabalho a três, fruto dos constrangimentos inerentes à pandemia e é um deleite para os olhos. Esta opção não é a ideal, mas existe fluidez total entre os saltos temporais constantes do filme e a sua unidade como um todo nunca está em risco. Mais do que uma opção conveniente, transporta-nos para o passado, dos antigos grandes estúdios de Hollywood, através do tipo de luz que usa para iluminar as cenas e do evidente grão, fruto do uso de película 16mm. A direcção de fotografia em estúdio, durante a narrativa ficcional, é exclusivamente da autoria de Rui Poças, provando ser o melhor director de fotografia a trabalhar em terras lusas, e é particularmente deslumbrante nas cenas à chuva. Temos ainda Sayombhu Mukdeeprom, que dispensa apresentações perante currículo tão invejável, e Gui Liang (em estreia), que também têm os seus grandes momentos.
Tanto Edward como Molly, encarnados respectivamente por Gonçalo Waddington e Crista Alfaiate, são o reverso de si próprios e fascinantes em igual medida. Gonçalo Waddington revela Edward na sua cobardia, um fraco e patético homem digno de pena. Inicialmente torna-se difícil torcer por ele, mas a viagem, tornada peregrinação, descobre o homem por detrás dos seus defeitos. Conseguir transformar um vilão num ser humano digno de respeito, através da construção exímia do seu arco narrativo de redenção, só é possível graças ao seu enorme talento. Crista Alfaiate, por outro lado, mostra Molly como uma mulher forte, obstinada e de uma fé inabalável no amor por Edward. Não são dadas quaisquer explicações para este facto, assim como para a sua frágil condição física, o que apenas adensa o interesse do espectador e a aura de mistério que recai sobre ela. Ao acrescentar pormenores de personalidade, como um riso característico, irritante no início mas inesquecível aquando o final, enriquece-a e torna Molly mais próxima do espectador. Não é exagero afirmar que é a personagem mais hipnotizante a surgir no cinema português na última década, e da qual nunca conseguimos desviar o olhar.
Existem ainda pequenas sub-histórias, dentro da odisseia principal, e estas são servidas por um leque extraordinário de actores que as elevam de sobremaneira. Impossível não referir a extraordinária sequência de um jantar a bordo de um navio, com um desfilar de talento e de diálogos prodigiosos entre cada uma das personagens terminando num inesperado modo operático. Estes momentos espalhados pela narrativa são ainda indicadores da riqueza e complexidade de ideias em discussão de temas como fé, cultura, amor, história, colonialismo ou religião sem os referir directamente. Uma recompensa directa a quem lhe dispense total atenção, pois uma pequena distracção e perdemos o comboio desta viagem.
Nota final para o modo como utiliza diversas línguas faladas durante o filme. Em cada um dos países que visita existe um narrador que fala a língua nativa do país, dando um ritmo próprio a cada uma delas, de inúmeros filmes dentro do filme. É evidente que os protagonistas Edward e Molly são ingleses, mas falam sempre português enquanto trocam ideias e conversas com os nativos nas suas próprias línguas. Outras vezes os próprios nativos falam português, outras vezes inglês ou até mesmo francês. Algumas vezes não surgem legendas do que é dito, deixando o espectador a tentar ligar as pontas da conversa. O sentimento verdadeiramente bonito é que o entendimento, independente da língua falada, é total. Todos entendem o que é dito mesmo quando não o aceitam. Apenas mais uma brincadeira criada na mente de Miguel Gomes e que adensa ainda mais a narrativa.
Grand Tour é uma viagem complexa que desafia o espectador nas suas noções adquiridas de espaço, tempo e cinema, oferecendo, aos dispostos a perderem-se no seu labirinto de ideias e reflexões, uma recompensa que perdura, e muito, na memória. Como um poema inacabado que o poeta anseia terminar. Sublime.